Feridas por sarar

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O Observatório sobre Crises e Alternativas, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, empreendeu um estudo coletivo e interdisciplinar sobre trabalho e políticas de emprego que procura cobrir os variados ângulos das políticas públicas nestes domínios em Portugal. Este trabalho, publicado em livro, inscreve-se numa tradição de economia política que tem sido uma das marcas do Observatório. Procura-se nesta obra, não só proceder a uma detalhada análise dos processos socioeconómicos que têm atravessado o nosso país, mas também oferecer propostas e pistas de ação alternativas que sirvam de contraponto ao discurso dominante. Trata-se de uma análise sobre os antecedentes da crise, sobre os impactos concretos no seu período crítico com a imposição das políticas do (e para além do) “Memorando”, e sobre os danos causados que se projetam no tempo.

No chamado “processo de ajustamento”, a troika e o Governo PSD/CDS assumiram o trabalho como a principal variável de ajustamento da economia, no pressuposto, absolutamente mentiroso, de o trabalho (salário direto e indireto, direitos, proteção no desemprego) ter sido a causa dos desequilíbrios desencadeadores da crise. A implementação da política de desvalorização interna que concretizou tal opção foi injusta e errada. Injusta porque provocou redução de salários, de prestações sociais e de importantes direitos laborais (individuais e coletivos), um forte aumento do desemprego, a fragilização de políticas sociais, o enfraquecimento do Estado e uma pior distribuição da riqueza. Errada porque foi fortemente recessiva, conduziu à perda de capacidade produtiva e reforçou emigração. O chamado novo emprego e os “novos” vínculos contratuais que surgiram a partir daí ampliam as precariedades e tendem a consolidar uma matriz de baixos salários.

A desestruturação das relações laborais, provocada pelas alterações impostas nas instituições que enquadram as relações de trabalho e pela transferência de rendimentos e de poder do fator trabalho para o fator capital, foi, muito provavelmente, a maior transformação que o nosso país sofreu. Eduardo Ferro Rodrigues, presidente da Assembleia da República, ao apresentar esta obra assumiu que “com maior ou menor investimento, com mais ou menos cortes, com mais ou menos cativações, não se pode dizer que os sistemas públicos de saúde, educação e segurança social se tenham totalmente descaracterizado. Mas na área do trabalho não terá sido assim”. Quer isto dizer que nas políticas sociais, da educação e outras, há feridas que é preciso ir paulatinamente tratando, mas na área do trabalho existem feridas que podem estar a transformar-se em chagas mortíferas.

Ferro Rodrigues, depois de lembrar que “a tolerância das sociedades democráticas com políticas que geram mais desigualdades está próxima do zero” e que “não basta criar emprego” nem “crescer de qualquer maneira” afirmou, “dar valor ao trabalho é de facto urgente”, ou seja, será pela colocação do trabalho revalorizado no centro das políticas que poderemos romper com as peias que continuam a atrofiar no plano estratégico a nossa economia e o desenvolvimento da sociedade. A dignidade no trabalho não sobrevive entregue às regras do mercado. Em muitos casos, os salários podem ser melhorados, apenas impondo-se regras que assegurem partilha da prosperidade.

Estamos em tempo de inovação tecnológica e de uma globalização que constantemente armadilha direitos no trabalho. Isso desafia os atores sociais e políticos e, em particular, os governos, a redobrado cuidado nas escolhas políticas. Repor equilíbrios nas relações laborais, na contratação coletiva e nos vínculos de trabalho é prioritário.

Manuel Carvalho da Silva
Investigador e Professor Universitário
Leia mais em: JN opinião 24.09.2017

1 Manuel Carvalho da Silva, Pedro Hespanha e José Castro Caldas (Coords.), Trabalho e políticas de emprego. Um retrocesso evitável. Coimbra: Actual.

2 Fundação Calouste Gulbenkian, 21/09/2017. Apresentação de Eduardo Ferro Rodrigues e Raymond Torres.