Os avós são elementos fundamentais, estruturantes e afetivos, enquadradores e confidentes, mesmo que por vezes extravasem um pouco as suas competências e entrem no domínio dos pais, o que origina alguns conflitos. Mas é assim… são os avós, eles próprios pais de poucos filhos e, portanto, ainda mais sequiosos de ter aquele bebé que gostariam de ter tido. Todavia, há também que respeitar a sua independência e entender que os avós têm direito a uma vida própria… felizmente!
Uma coisa é certa: os avós atuais são, na sua maioria, muito mais letrados do que nas gerações anteriores (o que não significa obrigatoriamente mais cultos) e vivem também mais longe dos filhos e, consequentemente, dos netos; mesmo quando vivem perto, as dificuldades de mobilidade e o rolo compressor do quotidiano provocam um afastamento que não tem forçosamente de ser o geográfico.
Por outro lado, depois de um salto geracional muito grande, os paradigmas dos atuais avós são um “tira daqui, põe dali” muito semelhante aos dos filhos e dos netos. A moda, quando chega, é para todos, como é a televisão, a tecnologia e a capacidade de estar no computador ou nas redes sociais.
É óbvio que há sempre algumas diferenças como, para muitos, a nostalgia de que a educação “dos seus tempos” é que era boa, mesmo quando os “seus tempos” não foram factualmente os melhores. Outra coisa também é certa: os avós sabem que o tempo não perdoa e sentem-no todos os dias, seja na pele, nos ossos ou nas forças que começam a faltar, seja no emprego para o qual não se vai com a mesma alegria, ou com a dura realidade de, perante uma nova perspetiva de trabalho, a resposta ser “sim, o senhor tem competência, sim, mas… a idade, mas também porque, usando uma metáfora, se a criança é o fogo que nos aquece, quando há pais no meio, os avós sentem-se mais afastados desse “centro de vida” e, portanto, corre um certo arrepio nas costas… até porque, olhando para trás, veem a “cortina” humana já muito retalhada, sem bisavós e muito menos trisavós. No fundo, é a constatação de que a finitude do tempo existe e se aproxima, queiramos ou não, demos ou não conta disso.
Em geral, a sociedade não reserva aos mais idosos e, portanto, a muitos avós uma perspetiva de vida verdadeiramente interessante: ou os obriga ainda a trabalhar porque a reforma é tardia e não existe (o que é incrível!) um sistema em que, a partir de certa idade, se possa continuar a trabalhar mas em part-time, se for esse o desejo das pessoas, ou então arruma-os numa prateleira em frente a um televisor, consumindo telenovelas e séries criminais.
Já poucos avós em 2017 se recordam da guerra colonial e da ditadura, sofreram carências e pobreza. Viram nascer a democracia mas, depois de um momento de esperança, não se sentem especialmente beneficiados por ela – isso não obsta a que sintam uma atração/repulsão pelos “políticos” e o que creem significar, considerando que “o mundo caminha para a desgraça”, mesmo quando não é bem o caso, pesem as notícias dantescas que chegam minuto a minuto, seja de um furacão, seja de um míssil coreano, de um fait divers trumpista ou de um ataque do Daesh.
Os netos, para os avós que não desenvolveram uma vida plurifacetada e cheia de interesses e desafios, são um bálsamo. Nesta Europa quase sem rumo (e quase sem crianças!), a uma certa arrogância e falta de afetividade das gerações seguintes, os avós podem ter a tentação de responder com a autoridade e alguns vícios de poder das gerações anteriores.
Muitos filhos acham também que os seus pais (na condição de avós, portanto) servem para cuidar dos netos, ser bombeiros em caso de necessidade, abdicarem da sua vida própria em prol das circunstâncias dos filhos.
Todavia, é bom interiorizar que os avós, depois de criados e tornados autónomos os filhos, têm direito a usufruir dos anos que lhes restam a viverem um amor, a cumplicidade de quem está ao lado, sem que isso seja interpretado como amar menos os filhos ou os netos. É bom que os avós tenham vida própria, que, mesmo reformados, saiam, se divirtam, gozem o tempo, não sejam escravos de mais ninguém.
Também é bom que, na ausência de objetivos e de programas na vida, não sejam eles próprios intrusivos, dando constantes palpites na vida dos filhos e tentando comandar a vida dos netos, com o argumento de que “já educaram filhos”, imiscuindo-se na vida dos mais novos, explorando desinteligências do casal, fazendo críticas por vezes malévolas ou sufocando a relação dos mais novos, cobrando com juros elevados de subserviência o apoio que deram, seja monetário para a compra de uma casa ou de um carro, seja por tomarem conta dos netos e, assim, “desenrascarem” os filhos.
Com as gerações a misturarem-se, os estilos de vida urbanos, as pessoas a terem filhos em diversas décadas da vida e com perspetivas culturais e sociais (felizmente) cada vez mais amplas, ser avó ou avô é um “lugar” onde existe alguma indefinição.
Todavia, espero que muitos, mas mesmo muitos, dos avós que leem estas palavras afirmem com vigor: “Ajudaremos os nossos filhos e fruiremos dos netos. Tentaremos ensiná-los e dar-lhes mimo sem os estragar. Seremos educadores, mas respeitadores da vontade dos pais. Não os substituiremos nas suas funções… e temos muitas coisas interessantes para fazer, para quase nos bastarmos a nós próprios, e fazer “a coisa mais divina que há no mundo, que é viver cada segundo como nunca mais”, como escreveu Vinicius de Moraes.
Avós e netos podem ser cúmplices, porque os extremos se tocam, mas com a tolerância e a satisfação também ela cúmplice de quem ocupa a faixa do meio. Ou resumindo: descobrir em cada fase da vida a riqueza de cada indivíduo, redescobrindo em cada indivíduo a riqueza nobre e infinita da humanidade.
Mário Cordeiro
Pediatra
Jornal i 19.09.2017