A imprevisibilidade tornou-se numa atitude cultural que serviu de sustentação ideológica ao desenvolvimento de um modelo de sociedade que quis prescindir do “estado social” e dos “direitos adquiridos”
Uma das características do nosso mundo é o da sua total imprevisibilidade: a da vida de todos e de cada um de nós.
Tal imprevisibilidade não é, contudo, encarada por alguns apenas como uma consequência indesejada do modelo de sociedade que se foi afirmando desde o último quartel do Século XX.
O gosto e a atração por uma imprevisibilidade virtuosa têm configurado, de facto, uma cultura que se quis e quer incutir na vida das gerações mais recentes.
O que para as gerações anteriores era considerado uma condicionante indesejável que importava ir controlando, reduzindo e vencendo se possível passou a ser apresentado como uma ideia positiva.
A imprevisibilidade como condição da vida serviu, assim, de sustentação ideológica ao desenvolvimento de um modelo de sociedade que queria prescindir do “estado social” e dos “direitos adquiridos”, considerados estes como privilégios de gerações velhas e egoístas e inibidores de desenvolvimento e riqueza.
Procurou-se, por isso, associar a virtude da imprevisibilidade com noções mais aliciantes como, por exemplo, a “liberdade de escolha e de circulação”, o primado da “iniciativa individual”, ou mesmo o conceito quase milagroso de “empreendedorismo”.
Esta pretendida, e realmente alcançada, imprevisibilidade da vida e os resultados que ela gerou no nosso mundo parecem agora, contudo, fora de controlo.
Há, com efeito, um grau de imprevisibilidade alarmantemente grave na política e na economia mundiais, bem como na vida de um cada vez maior número de pessoas.
O fenómeno dos refugiados é, neste último plano, apenas o exemplo mais flagrante e doloroso.
A imprevisibilidade que uns quantos acalentaram – na verdade como instrumento privilegiado de controlo social e desregulação jurídica das sociedades socialmente mais equilibradas que emergiram da II Grande Guerra – tornou-se pois um fator de total desestabilização política, económica e social.
Não expressando ainda uma análise crítica sobre o fenómeno cujas virtudes ajudaram culturalmente a sedimentar, os media começaram agora a expor – aparentemente atónitos – muitas das suas consequências políticas e sociais.
O pânico social que a já desarvorada imprevisibilidade vai, entretanto, suscitando traduz-se em movimentações políticas que alguns apodam ainda de populistas e em discursos e atitudes de governantes mundiais, inimagináveis ainda há poucos anos.
Portugal tem, mais recentemente, conseguido ir invertendo um pouco esse percurso.
Muito dos nossos mais recentes sucessos – de que quase todos se reclamam, aliás – resultam, em grande parte, da pequena inversão que ocorreu na sociedade portuguesa, quando se começou a reduzir os fatores de insegurança que a ideologia da imprevisibilidade justificava.
O facto de não terem florescido entre nós – como tem acontecido em outros países europeus – fenómenos políticos eufemisticamente designados ainda de populistas, resulta, precisamente, de ter sido possível manter e desenvolver, mesmo que limitadamente, o princípio da esperança entre os portugueses.
É essa cultura da esperança que, de forma responsável, mas perseverantemente, é necessário cuidar e fortalecer para que a ideologia da imprevisibilidade não regresse e permita que os fenómenos de alto risco que envenenam hoje a vida de tantos povos possam acontecer entre nós.
O caminho da esperança é exatamente o contrário do da imprevisibilidade.
Criar confiança e desenhar responsável e solidariamente um caminho de dignidade e futuro para todos é o único antídoto para o apavoramento social que se instalou em muitas partes de mundo e que tem permitido alimentar o ovo da serpente.
A auto-satisfação com os resultados obtidos e o abrandamento na construção do caminho da esperança são, todavia, riscos que importa evitar.
António Cluny
Jornal i 29.08.2017