Não foi sempre assim, mas já vemos isso há alguns anos. Encontrando nos diretos uma fórmula eficaz de agarrar as audiências, os canais de TV, nomeadamente os de informação, intensificam este recurso, sobretudo em casos de tragédia. E lá estamos nós, sentados em confortáveis sofás, a assistir a transmissões sem filtros, olhando à distância o sofrimento dos outros. Como quem vê um filme. A atual cobertura televisiva dos incêndios fornece muitos exemplos daquilo que importaria não mostrar.
Os fogos reúnem um inegável valor-notícia. Atingindo grandes dimensões e pondo em causa a vida de pessoas, têm de estar no topo da noticiabilidade do momento. E isso acontece por estes dias. Neste contexto, é legítimo que os jornalistas mostrem incêndios de maiores proporções e procurem falar com quem tem informação pertinente e rigorosa para transmitir. Até aqui, o consenso não será difícil de obter. Os problemas começam quando os média noticiosos exigem dos repórteres que colocam no terreno permanentes relatos, mesmo quando não há nada de relevante para transmitir. Em casos de tragédia, os deslizes avolumam-se rapidamente. E aí temos essas ligações feitas com planos de interiores de casas devassadas por câmaras que entram sem cerimónia em espaços íntimos, destapando, sem pedir licença, o desespero de quem vê toda a sua vida ameaçada. Ou então preenchidas com entrevistas a populares que mais não sabem dizer do que gritar a sua aflição. E quando tudo isso escasseia, ocupa-se o tempo com relatos redundantes, sob um fundo ameaçador de chamas que avançam vertiginosamente sobre uma equipa de reportagem que, decerto, não poderia estar ali.
Está tudo errado. Há muito tempo. Porque este debate sobre os limites da cobertura noticiosa dos incêndios não é novo. Já se tentou a autorregulação. Que não resultou. Talvez fosse aconselhável a Entidade Reguladora para a Comunicação Social revelar-se mais ativa na sua função de lembrar aos jornalistas a responsabilidade social que deve sempre acompanhar o seu trabalho… Todavia, não será fácil este chamamento para uma ética profissional que parece tão avessa ao atual ambiente mediático.
O livro já tem alguns anos, mas Umberto Eco, quando escreveu a obra que em português foi traduzida com o título “Viagem na irrealidade quotidiana”, sentiu necessidade de aí abrir um capítulo chamado “a transparência perdida” para falar da televisão. Da neotelevisão, aquela que foi inaugurada com os canais privados. Eco escreve que a principal característica dessa nova TV é “falar cada vez menos do Mundo exterior”, optando por “falar de si própria e do contacto que está estabelecendo com o seu público”. Justifica-se, assim, a exibição de todo um aparato tecnológico que, no passado, era escrupulosamente ocultado do olhar do público (microfones, câmaras de filmar…) e uma obsessão por contar os bastidores do trabalho que se faz (no caso dos incêndios, muitos repórteres falam abundantemente do risco que correm ao estar ali…). Numa procura permanente das audiências, esta neotelevisão constrói os seus enunciados em função daquilo que pensa ser os gostos do público. Se a televisão nos seus primórdios procurava mostrar mundos idílicos, agora a ambição esgota-se em exacerbar sentimentos. Dentro e fora do ecrã. Para que o contacto com quem vê não se quebre.
Em dias de notícias tão negativas, ver televisão corresponde muitas vezes a um tempo esgotante. Nos canais de informação, os diretos sucedem-se em relatos algo descontrolados à procura de populares ainda mais desorientados. É preciso, pois, que nas redações centrais haja coordenadores com outra ponderação. Noticiar o que acontece não é transformar a realidade num espetáculo dantesco que muitos de nós têm pudor em seguir, porque sentem o dever de não ver determinados planos ou escutar certos depoimentos. Está ali uma indecorosa violação dos direitos de gente que merecia ser amparada e não explorada em momentos de enorme fragilidade.
A cobertura dos incêndios não pode apagar imagens de fogos, nem calar a indignação dos atingidos. Mas também não deve transformar o que se noticia num filme de terror que se ensaia fazer em direto.
Felisbela Lopes
Professora Associada com Agregação da Universidade do Minho
Ler mais em: JN 18.08.2017