Os debates em torno do sistema de Segurança Social oscilam muitas vezes entre um discurso demasiado técnico e pormenorizado, que acaba por não ser acompanhado por todos, e um discurso quase escatológico, cheio de ameaças sobre um futuro próximo no qual supostas inevitabilidades demográficas e económicas ditariam o fim da segurança na reforma. Se o primeiro discurso tem estado ao serviço do distanciamento dos cidadãos em relação à compreensão deste subsistema, o segundo tem actuado no sentido de favorecer a sua privatização ou, pelo menos, de que lhe sejam aplicadas complexas engenharias neoliberais.
Hoje, com a Segurança Social a registar saldos positivos em Portugal, e depois da experiência acumulada com as falências de fundos de pensões e com a crise financeira, não é fácil convencer os cidadãos a desistirem de um sistema de previdência público e assente na solidariedade inter-geracional entre trabalhadores e pensionistas. Mas, depois de revertidos os cortes nas prestações e de serem resolvidas situações de evidente injustiça social, como as que penalizam as carreiras contributivas mais longas, há ainda muito a reflectir e a fazer para tornar o sistema mais justo e mais sustentável. É aqui que as evoluções na Segurança Social e no campo do emprego são determinantes, e interagem umas sobre as outras.
Na sequência do trabalho em curso na maioria que sustenta o governo sobre a Segurança Social e as novas regras para as pensões antecipadas (acesso, penalizações e bonificações) [1], multiplicaram-se no mês de Maio notícias que vieram lembrar uma norma em vigor: a idade legal da reforma sobe todos os anos, em virtude de ter sido indexada ao aumento da esperança de vida, através de uma fórmula que define também o montante das penalizações que se aplicam em caso de ser accionada a reforma antecipada. Esta alteração não é nova. Foi a Lei n.º4/2007, de 16 de Janeiro, que aprovou as bases gerais do sistema de Segurança Social, que introduziu (artigo 64ª) esta indexação, por via do chamado «factor de sustentabilidade». Passados dez anos, quando a idade da reforma está já nos 66 anos e 3 meses, e quando é previsível um aumento de um a dois meses, a cada ano que passa, para que um trabalhador atinja a idade legal de se aposentar, o que mudou talvez foi o olhar que os cidadãos têm sobre esta construção social. Com efeito, esta construção envolve muito mais do que a Segurança Social e induz a que se pense toda a organização social.
A primeira interrogação prende-se com o rumo de uma sociedade em que as escolhas políticas parecem ser crescentemente substituídas por decisões técnicas. Num passado ainda recente, os trabalhadores e os seus movimentos sociais tinham bandeiras claras como a diminuição da idade da reforma, traduzível num número redondo que era facilmente comunicável. Agora, a complexidade técnica da medida – desta como doutras – parece desenhada para a ocultação da realidade e para a dificuldade de a transformar. Mas há mais: de repente, parece que, sem proposta nem conflito dignos desses nomes numa sociedade democrática, uma «indexação» decidiu que todos os ganhos em tempo de vida colectivamente conseguidos pela sociedade – e que não são fáceis nem adquiridos para sempre, como se vê pelas regiões do planeta em que a esperança média de vida está a regredir –, ganhos esses que se medem em avanços científicos, na melhoria do saneamento básico ou do Serviço Nacional de Saúde, têm de ser entregues, de bandeja, ao tempo de trabalho. É como se o combate pela repartição dos ganhos de produtividade que ocorrem na esfera laboral tivesse dado mais um salto, surdo, em prejuízo dos trabalhadores. Achamos mesmo que o tempo de vida colectivamente arrancado à morte deve ser gasto a trabalhar?
A questão torna-se hoje particularmente pertinente, quando surge a jusante de uma paisagem social que, a montante, padece do desequilíbrio oposto. A sociedade que obriga os mais velhos a trabalharem até cada vez mais tarde é exactamente a mesma que obriga os mais novos (e muitos já não assim tão novos) a terem carreiras contributivas marcadas por períodos de trabalho e períodos de inactividade, bem como por descontos tendencialmente baixos, quando não mesmo inexistentes durante longos anos. Para os mais velhos, o período da reforma já é tantas vezes vivido como um tempo de redução dos rendimentos, e portanto de maior risco de pobreza, que não podem verdadeiramente colocar a hipótese da antecipação e consequentes penalizações. Indexar a idade da reforma à esperança média de vida é, em países de baixos salários como Portugal, impor um aumento da idade da reforma; não é proporcionar a escolha da reforma antecipada – e sê-lo-á cada vez menos para os futuros pensionistas. Para os mais novos, pensar no momento da reforma assemelha-se cada vez mais a imaginar um futuro de pobreza, risco que aumentará se se afrouxar a vinculação das pensões a um direito formado a partir do trabalho e garantido de forma incondicional aos trabalhadores, rumo que depressa levaria a derivas assistencialistas.
Apetece dizer que não há racionalidade nesta contradição entre fazer trabalhar demais e durante demasiado tempo uns, por um lado, e fazer com que outros sejam sistematicamente arredados de empregos com direitos, com rendimentos estáveis e ritmos de trabalho razoáveis, reproduzindo do mundo do trabalho até à formação das pensões as situações de desigualdade e de pobreza que continuam a marcar dramaticamente a sociedade portuguesa. Mas, em rigor, alguma racionalidade existe: trata-se é da racionalidade neoliberal e não da que orienta objectivos de justiça social. E o que une a condição imposta a todas as gerações envolvidas é a fabricação de modos de degradar o seu rendimento disponível e as suas condições de vida.
As formas de solidariedade que importa pensar se queremos defender uma maior justiça e sustentabilidade na Segurança Social passam, por isso, por articulações entre o que se passa no seu interior e o que ocorre no mundo do trabalho. Não é possível fazer muito mais do que remendos no sistema de Segurança Social sem regressar a objectivos de pleno emprego e sem colocar no centro das políticas de emprego o combate a um sistema que continua a estar assente em baixos salários, em trabalho sem direitos, em carreiras contributivas interrompidas, em baixos descontos, em sindicatos frágeis e em ataques à negociação colectiva. Não é este o retrato que continua a caracterizar o país quando, mesmo no actual contexto de aumento do emprego, olhamos para o tipo de emprego criado e vemos salários a aproximarem-se do salário mínimo, contratos precários, etc.? Ou quando olhamos para um desemprego que baixa, é certo, mas continua próximo dos 10%, mesmo com o quadro de emigração maciça que conhecemos nos últimos anos?
A vinculação da segurança na reforma à segurança no trabalho, com a correspondente articulação de políticas públicas nas duas áreas, vai sem dúvida continuar a suscitar a oposição de instituições europeias e internacionais, marcadamente neoliberais. Mas sem essa vinculação a orientar as escolhas políticas depressa se resvala para a substituição do Estado social por um regime assistencialista. Um regime que começa por trocar o direito ao trabalho digno, e para todos, pela exploração crescente de um exército de desempregados, precários e trabalhadores pobres, para acabar a gerir uma sociedade com cada vez mais pobres, quando em vez disso devia ter sido travado, logo no emprego, um combate tenaz às desigualdades.
Sandra Monteiro
quarta-feira 7 de Junho de 2017
Notas
[1] Ver, por exemplo, Elisabete Miranda e Catarina Almeida Pereira, «Pensões antecipadas: o que há de novo na proposta do Governo?», Jornal de Negócios, 6 de Maio de 2017.