Caixões para bebés

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A cena tem uns anos, mas permanece atual: uma jovem mãe leva a filha, de meses, ao consultório do dr. House, personagem televisiva interpretada por Hugh Laurie. A preocupação maternal com o estado de saúde do rebento não comove o pragmatismo arrogante do médico mais famoso do Mundo. “A menina não foi vacinada”, atira ele. Ao que responde a mãe: “Não vamos vaciná-la”. Porque, explica, os nutrientes existentes no leite materno bastam. Torna o dr. House: “Acha que as vacinas não funcionam?” De novo a mãe: “Acho que uma multinacional farmacêutica quer que eu pense que funcionam”.

House pega no sapo verde e fofinho que a bebé levava na mão (todo à base de produtos naturais) e interage com a petiz, dirigindo-se à educadora: “Sabe que outro negócio [para crianças] funciona bem? O dos pequenos caixões para bebés. Pode comprá-los em verde, como o sapo, ou em vermelho-vivo”. A jovem libertária (no sentido irresponsável do qualificativo) exibe um olhar chocado e pergunta, num apelo quase misericordioso: “Diga-me o que tem a minha filha”. E o dr. House diz-lhe: “Uma constipação”.

Quando um pai decide não vacinar um filho contra uma doença altamente contagiosa, como o sarampo, deve ter, em primeiro lugar, a noção de que está a colocar em risco a vida da criança. E, depois, que está a arrastar para um campo minado uma comunidade inteira. A vacinação é um mecanismo de defesa pessoal, mas é-o também, e sobretudo, de defesa da vida em sociedade. Em Portugal, felizmente, apenas uma pequena minoria está convencida de que o Plano Nacional de Vacinação (universal e gratuito) é uma maçada burocrática ou uma intrusão do Estado na vida familiar. E, entre a comunidade médica pediátrica, não há praticamente ninguém que defenda a arbitrariedade paternal na toma da profilaxia.

Mas agora que somos confrontados com um surto que, só nos primeiros quatro meses do ano, fez mais vítimas do que na última década, é desejável que nos foquemos no essencial: quem expõe os filhos a este risco desnecessário – seja por desleixo, desinformação ou vontade – está a cometer um ato que, além de moralmente condenável, pode revelar-se criminoso, como tão apropriadamente lembrou o pediatra Mário Cordeiro. Porém, tornar a vacinação obrigatória por lei – castigando os adultos faltosos – podia excluir ainda mais os pobres e os socialmente desfavorecidos. Para além de que, juridicamente, se tratar de um debate de grande complexidade, por estarem em causa liberdades individuais. Mais do que uma exigência do Estado, a vacinação tem de ser assumida como um compromisso cívico coletivo.

Os caixões para bebés do dr. House talvez resultem numa projeção gráfica demasiado violenta. Mas mesmo num país como Portugal, que tem uma das melhores taxas de vacinação do Mundo (e convém não esquecer o quão desenvolvido é o sistema de alertas aos pais promovido pelos centros de saúde), nunca é demais voltar ao óbvio para não esquecer o óbvio: as vacinas salvam vidas. E isso não é uma teoria da conspiração criada para tornar mais ricas as farmacêuticas. É um facto que não merece discussão.

Pedro Ivo Carvalho