O ritmo frenético do trabalho, os horários incompatíveis com a família, a falta de apoios estatais, de um conceito de família alargado, extensível, por exemplo, aos vizinhos ou parentes mais afastados, os salários no limiar da pobreza, impedem muitos de nós de sermos cuidadores dos nossos pais, das nossas tias, dos nossos avós
Não entendo absolutamente nada de futebol. Os insondáveis desígnios do esférico não têm grande efeito em mim: é óbvio que apreciei com um entusiasmo contido a vitória no Euro, mas tenho quase a certeza que aquilo que hei-de reter para sempre na minha memória de longo prazo será o “desbocanço” de Éder, o “patinho feio”, na Alameda, a anunciar à multidão: “Hoje é feriado, c****!!!”
Sou do Sporting essencialmente porque nasci em Alvalade, porque o meu irmão mais velho me evangelizou subtilmente para chatear os meus pais e avós benfiquistas — e já bisou a mesma influência sonsa com os meus dois filhos mais velhos, para os virar também contra o pai — e porque, na verdade, isto de apenas celebrar vitórias de 18 em 18 anos até dá carácter. A vidinha é mesmo assim.
Não vale a pena tentarem explicar-me o que é um fora-de-jogo e levo esta coisa do clubismo tão pouco a sério que já me emocionei com a águia Vitória às voltas na Luz num dérbi contra o meu leão. A verdade é que o futebol está cheio de poesia e é só mesmo isso que me interessa para este caso. Se dúvidas houvesse do que acabo de afirmar, basta a leitura matinal dos diários desportivos, com os seus riquíssimos recursos linguísticos (e uma ética jornalística muito própria), para as dissipar por completo: há sonetos, há odes, há longas epopeias, há musas para todos os gostos, há vilões e heróis, e tudo isso se encontra à venda, bem cedo pela manhã, nas bancas dos quiosques, espalhadas pelas páginas destes jornais.
A mesma magia aconteceu numa corriqueira conferência de imprensa de antevisão de um jogo assim não muito importante (Olhanense-Arouca) no ido ano de 2013. Abel Xavier foi para lá da extravagância capilar a que nos habituou desde os seus tempos áureos de jogador de futebol, para discorrer poeticamente aos jornalistas sobre a etimologia da palavra “treinador”. Com os microfones ligados e as câmaras de televisão alinhadas, o treinador do Olhanense explicou aos presentes que o treinador mais não faz que, tal como a palavra indica, treinar a dor. E continuou, inebriado por esta brilhante linha de discurso metafórico, acrescentando ainda que o treinador também é um lutador incansável — luta a dor —, batendo-se com todas as suas forças para atingir um único objectivo: sagrar-se vencedor (vence a dor).
Foram quarenta segundos épicos (pelo menos para mim) na história do futebol-poesia português, e peço-os emprestados para introduzir o tema — muito menos apaixonante na sociedade portuguesa do que o futebol — deste texto: os cuidadores. Aqueles que abdicam de tudo, muitas vezes de si próprios, para cuidar da dor. Não da sua — a dos outros. Muitas vezes sabendo que não a vão vencer, por mais luta que lhe dêem. Sorte a dos treinadores da bola…
Quando num sábado de Outubro, debaixo de uma chuvada torrencial, a minha mãe sentiu uma violenta dor de cabeça, numa rua deserta de Lisboa, e se viu muda, incapaz de articular qualquer pedido de ajuda através do telefone, ou de um grito mudo de desespero, sei que foi buscar todas as forças que tinha para vencer a dor. Sei lá como conseguiu chegar a casa, ou explicar-se por gestos e a cantar para explicar, em grande aflição, o que se estava a passar, e foi esse o dia em que eu passei definitivamente para a idade adulta e juntei aos meus mil ofícios a árdua tarefa de cuidar da dor da minha mãe.
Num dos singles do vinil do Sergeant Pepper’s Lonely Heart Club Band dos Beatles, que os meus pais punham sempre a rodopiar na ponta da agulha quando era pequena, McCartney perguntava, divertido, cheio de impetuosidade da sua juventude: “Will you still need me/ Will you still feed me when I’m 64” [Ainda vais precisar de mim/ Ainda me vais dar de comer quando eu tiver 64 anos?]. A velhice, nessa memória a 45 rotações por minuto, era longínqua, mas agora está um elefante ancião na sala e não há como escondê-lo ou ignorá-lo.
Sou cuidadora — a minha mãe, a minha mãe indestrutível, lá do alto do pedestal onde sempre a coloquei, envelheceu e está doente. Precisa de mim, não a tempo inteiro, mas precisa de mim para algumas coisinhas. E foi assim que eu saí, de mansinho, do colo da minha mãe e agora sou eu quem tenho que lho emprestar.
Este país não é para novos nem, muito menos, para velhos.
O ritmo frenético do trabalho, os horários incompatíveis com a família, a falta de apoios estatais, de um conceito de família alargado, extensível, por exemplo, aos vizinhos ou parentes mais afastados, os salários no limiar da pobreza, impedem muitos de nós de sermos cuidadores dos nossos pais, das nossas tias, dos nossos avós. Restam os lares, sobrelotados, indignos, depósitos escondidos da vergonha que a sociedade moderna tem da velhice.
Cruzei-me, durante as 38 alergéneas e poderosas primaveras onde tudo renasce que já vi na vida, com duas pessoas verdadeiramente boas, das quais nunca ouvi uma maledicência ou um tricotado de má língua. Sem surpresa, ambas são cuidadoras. Cuidadoras de uma série de pessoas, de velhos, a esmagadora maioria dos quais sem qualquer grau de parentesco. Fazem-no ambas, abnegadamente, sem pedir nada em troca.
A minha tia Maria, da aldeia de São Félix, em São Pedro do Sul, e a porteira do meu prédio em Lisboa, a Manuela, revezam-se para encaixar, entre trabalhos árduos e braçais nas limpezas de escritórios e casas particulares, os seus velhos. Dão-lhes banho, levam-lhes a sopa, dão um jeito à casa, tratam da roupa, telefonam de noite para saber se está tudo bem, desejam uma boa noite de sono e despedem-se com um doce até-amanhã. E tudo volta a repetir-se até ao inevitável fim. Lidam com demências, com cancros, com AVCs, ou apenas com a velhice — o mais duro dos diagnósticos.
Mais recentemente, através da janela mágica do chat do Facebook, reatei conversa com uma antiga colega de trabalho, que faz parte da mole de centenas de “amigos” que ali guardo na rede social. Falámos de mães, apenas delas. Contei-lhe que a minha reaprendeu rapidamente a falar, que já consegue escrever qualquer coisa, e que a leitura, o seu grande vício a par de dois maços de Português Suave amarelo, é que ainda é o maior desafio desta maratona. Uma hemorragia cerebral roubou à minha mãe uma grande parte de quem ela era, mas ela reaprende e reconstrói quem é, quem nunca deixou de ser, com a sofreguidão de uma criança que se deslumbra com o mundo enorme, e sorve tudo o que ele lhe tem para dar.
Depois ela falou-me da sua mãe, com um amor infinito que já não é de filha, é de mãe, mas também com um cansaço sem fim, e uma desesperança aflitiva. Às vezes os cuidadores também cuidam uns dos outros. É sobrevivência. A minha amiga dedica-se exclusivamente à sua mãe há cinco anos e, ao contrário da minha história, esta não tem um final feliz q.b. São cinco anos, mais de 1800 dias, quase 44.000 horas a deixar tudo o mais em suspenso, revezando-se com a irmã, e com a frustração pelo profissionalismo e humanidade das empresas de pessoal especializado que vai contratando a peso de ouro para a ajudar na tarefa de cuidar da sua mãe.
As palavras não são minhas. Reproduzo-as na íntegra: “Ser cuidadora não é fácil e sobretudo quando o somos a tempo inteiro e vemos a degradação física e cognitiva da nossa mãe. E não há muito que se possa fazer para reverter a situação, a não ser dar-lhe qualidade de vida em detrimento da nossa própria saúde física e mental. Mas, como já te disse, são escolhas que fiz. Ela fez e deu o seu melhor como mãe e agora é a minha vez.“
Os meus filhos atiram profissões bizarras nos seus planos para a idade adulta: a mais velha quer ser Youtuber, Instagramer, ou Internet Enabler, o rapaz gostava de ser piloto de drone ou construtor oficial da Lego. Mas o que me salta à vista, no momento em que volto a ter dores de crescimento e não é por me estarem a crescer os ossos das pernas, é que a mais nobre das profissões de futuro que se avizinham é a de cuidador.