O novo presidente dos EUA já mostrou os valores pelos quais se rege. Não são os que levaram à afirmação da democracia liberal.
Acabada a campanha eleitoral, Donald Trump foi um presidente eleito muito interventivo, contra a tradição americana. E na Casa Branca continuou a actuar, não como chefe de Estado, mas como líder de um pequeno grupo de familiares e amigos.
Viu-se quando há uma semana proibiu a entrada nos EUA de refugiados sírios e suspendeu a proveniente de sete países de maioria islâmica. Não informou (e muito menos consultou) os departamentos competentes da Administração americana, gerando a maior confusão nos aeroportos. E teve que recuar, quando percebeu que não podia impedir pessoas com licença de residência nos EUA de entrarem no país.
Escreveu o “Financial Times” em editorial: “Se Trump está preocupado com países cujos nacionais estiveram envolvidos em atrocidades recentes, a ausência (na lista das nacionalidades que não podem entrar nos EUA) de nações como a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos e o Paquistão é difícil de explicar. Que o presidente tenha interesses empresariais em vários países que curiosamente não figuram na lista, e não tenha interesses em qualquer dos incluídos, não dá à lista qualquer legitimidade”.
Cumprir as promessas
Mas não falta, mesmo em Portugal, quem ainda alimente esperanças de que o homem poderá vir a revelar-se não tão mau como isso. E quem peça mais tempo para ter uma opinião fundamentada sobre o novo presidente americano.
Sublinha-se, por exemplo, que tendências políticas, como o isolacionismo ou o proteccionismo, têm uma larga presença na tradição e na história norte-americana. Ou que o sistema político americano, com os seus “freios e contrapesos” (checks and balances), limitará o poder presidencial de Trump. É verdade, mas Trump é uma novidade absoluta.
Claro que outros políticos, que criticam o novo presidente, também mentiram; é um problema da política, desde sempre. E os adversários de Trump nem sempre têm manifestado um grande respeito pela tolerância. Mas isso não justifica Trump, que é o líder da única superpotência mundial e – até há pouco – o grande baluarte da democracia liberal e do Estado de direito.
Por cá, o Presidente da República relativizou o distanciamento de Donald Trump quanto à Europa, afirmando que existe “uma tradição isolacionista” dos presidentes norte-americanos quando iniciam funções. Só que este presidente é radicalmente diferente dos presidentes que o precederam. De Truman a Obama, os presidentes dos EUA apoiaram a integração europeia; Trump saúda o Brexit e dá-o como exemplo a seguir por outros membros da UE.
Decerto que Trump, contradizendo posições suas anteriores, criticou, com brandura, a multiplicação de colonatos por Israel; e a sua embaixadora na ONU disse que seriam mantidas as sanções à Rússia por causa da anexação da Crimeia. Resta saber qual é, de facto, a política externa de Trump, que parece algo variável e imprevisível, sem estratégia clara.
O problema fundamental está no carácter de Trump e nos valores que preza. Ele é presidente da mais poderosa nação do mundo; a “pós-verdade” funciona como um manto de ilusão que o faz viver num mundo virtual. Viu-se quando se empenhou em garantir que na sua tomada de posse tinha estado presente mais gente do que em qualquer outra – uma ridícula falsidade, na qual ele provavelmente acreditava.
Falta de sentido ético
O novo presidente foi eleito graças à revolta de um grande número de americanos que se sentem marginalizados, com os seus rendimentos quase estagnados desde há décadas, enquanto um pequeno número (o tal 1%) vê a sua riqueza aumentar em flecha. Mas neste governo de multimilionários que é o de Trump não se vislumbram pessoas preocupadas com as crescentes desigualdades; ou com melhorar a vida dos pobres. O próprio Trump elogiou-se a si próprio pela sua esperteza em encontrar esquemas de fuga legal aos impostos, que outros menos ricos tiveram pagar por eles e pelo que faltou a Trump pagar.
Mais: Trump quer baixar impostos aos mais ricos e deitar para o lixo muitas das regulamentações financeiras criadas após a crise global desencadeada pelo crédito de alto risco (subprime). E houve quem se mostrasse perplexo com a alta das acções em Wall Street após a eleição de Trump…
O homem não pode ser considerado um débil mental ou pouco inteligente. É tudo menos isso, o que o torna particularmente perigoso. Há que levar a sério a ameaça que ele representa, não o branqueando.
Francisco Sarsfield Cabral
http://rr.sapo.pt/artigo/75224/nao_branquear_trump