A verdade não se esquece de nós

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Nestes tempos em que a “pós-verdade”, ou dito de um modo menos eufemístico, a mentira organizada percorre o sistema circulatório da atividade política, será importante termos presente que a humilhação da verdade factual e objetiva não é monopólio de Trump, nem dos populistas de todos os países. A nossa múltipla e enrodilhada crise europeia começou com uma grotesca mentira, que continua a ser repetida até à exaustão. Na verdade, o discurso dominante continua, ainda, a falar na “crise das dívidas soberanas”, quando se refere ao abismo em que a eurozona mergulhou com a vaga de resgates iniciados em 2010. Quem não se lembra dos aprendizes de estadista e seus servidores repetindo que os Estados se tinham endividado por um impulso incontrolável de despesismo, e que os povos se tinham embriagado numa vertigem de consumo “para além das suas possibilidades”? Num tempo em que os atores políticos não param para pensar, e muito menos são capazes de confessar que se enganaram, temos de perguntar: será mesmo assim?

Se analisarmos a variação da dívida pública nos países da eurozona, entre 2007 (o ano anterior à crise financeira global iniciada nos EUA) e 2010 (o ano dos resgates à Grécia e à Irlanda) verificamos o seguinte: todos os países se endividaram fortemente. Nesse período, houve um acréscimo médio global de dívida pública em todos os países do euro de 19 pontos percentuais (pp). Por exemplo, em 2007, Portugal e a Alemanha tinham quase o mesmo valor percentual de dúvida pública (68,4% e 65,2%, respetivamente). Em 2010, os dois países tinham aumentado significativamente a sua dívida: 25,6 pp para Portugal, contra 17,3 pp da Alemanha. O que tinha acontecido? Qual a mola que empurrou os Estados a abusarem dos mercados de crédito, e o próprio BCE, ainda sob a batuta de J.-C. Trichet, a lançar os dois primeiros programas de intervenção heterodoxa nos mercados? A resposta é inequívoca: a brutal destruição de riqueza registada no setor bancário, e o risco de o seu agravamento se transformar num colapso sistémico da economia europeia. Já em dezembro de 2008, o Conselho Europeu (o mesmo que agora prega a austeridade perpétua) tinha incitado ao investimento público, com força e velocidade. Os Estados endividaram-se para salvar a sua banca, que os distraídos arquitetos da eurozona deixaram à solta, sem regulação nem vigilância. E não se julgue que com os planos de resgate a lógica mudou. Em maio de 2010, quando se soube que a Grécia ia ser resgatada, as ações dos bancos franceses e alemães subiram mais de 20% em bolsa. Os investidores sabiam que o dinheiro dos contribuintes europeus não se destinava a salvar a economia de Atenas ou a minorar o sofrimento do povo grego. 85% do montante dos resgates gregos serviu para uma “saída limpa” da banca franco-alemã da armadilha grega que ela própria havia montado. O mesmo aconteceu, em escalas diversas, nos outros países, incluindo Portugal. O nome correto da tragédia europeia deveria ter sido “crise do sistema bancário”, e não da “dívida soberana”. A verdade deve receber o nome das causas, em vez de se esconder no disfarce das meras consequências. Depois de se terem sacrificado biliões de euros (dez vezes mais do que o valor dos resgates aos Estados) para dar alento à banca, eis que ela volta a exigir mais e mais sacrifícios. De Portugal à Alemanha. Da Itália a Espanha. Podemos querer recalcar ou esquecer a verdade, mas ela nunca se esquece de nos cobrar, com juros, o preço da mentira.

Viriato Seromenho-Marques
Opinião DN 18.01.2017