É possível dissolver o mundo no riso? Este é o grande desafio. Só é possível mudar aquilo de que se pode rir. Não construam monumentos que não possam derrubar e não permitam regimes que sejam imunes à humanidade
Nos livros do Tintim havia sempre um conjunto de países eslavos imaginados em que pululava gente de hirsutos bigodes e imensas conspirações, e a pólvora era preparada para guerras infinitas. A ficção fica sempre aquém da realidade e no centro da Macedónia (antiga região da Jugoslávia), nas margens do rio Vardar, fica Veles, uma cidade de pouco mais de 50 mil habitantes. Naquela região, segundo leio na “Visão”, que cita uma reportagem da BBC, o salário mínimo é de €350. Apesar disso, na cidade há uma explosão de jovens endinheirados que gastam dinheiro em bares da moda. O milagre podia chamar-se “Trump.net”. “São o ‘exército’ de adolescentes que descobriram o ‘ouro digital’. Ou como fazer muito dinheiro inventando notícias falsas que colocam a circular nas redes sociais. Sobretudo destinadas aos cidadãos dos Estados Unidos da América”, garante a revista.
A questão das notícias falsas ganhou uma enorme atualidade com a vitória de Donald Trump, levando o fundador do Facebook a desmentir que a conhecida rede social tivesse ajudado a eleger o multimilionário de cabelo louro duvidoso. Isso não impede que, num mundo em que a mediação jornalística se tornou cada vez mais reduzida, tivessem muita divulgação “notícias” como o suposto apoio que o Papa Francisco tinha dado a Donald Trump, ou que o agente do FBI que investigava os emails de Hillary Clinton havia sido assassinado.
O que os jovens de Veles conseguiram foi reverter esse fenómeno a seu favor. Segundo a reportagem da BBC, um adolescente ganhou num mês 1800 euros inventando notícias favoráveis a Donald Trump, tendo disseminado as ditas cujas em locais da rede e entre apoiantes no Facebook de Donald Trump. Resultado? Uma onda de cliques e anúncios que premiaram o sonho americano dois ponto zero: mente que serás recompensado. Esta forma de ganhar dinheiro atraiu muitos jovens de Veles, que preferem ignorar a moralidade duvidosa do ofício. “Não nos interessa como votam os americanos. Só queremos fazer dinheiro para comprar roupa de marca e bebidas”, diz Goran, um estudante universitário com 19 anos, citado pela revista. “Não há dinheiro sujo em Veles”, garante o presidente da câmara, Slavco Chediev, afirmando que sente orgulho nestes “empreendedores” que, em grupos ou a trabalhar individualmente, encontraram um part-time e trouxeram à cidade um incremento significativo do consumo. E como toda a gente sabe neste mundo, o consumo é igual ao sucesso e este é a medida atual da verdade. Roosevelt dominou a rádio; Kennedy, a TV; Trump despacha o mundo em 140 carateres.
Antes do final dos anos 30 de todas as catástrofes, o dramaturgo comunista Bertolt Brecht imaginou um dispositivo teatral para denunciar as injustiças de todos os dias. A ideia era criar um afastamento radical entre a peça e o espetador, de modo a que tudo o que víssemos no palco não passasse por normal, e deste modo transformar aquilo que nos acontecia todos os dias num cenário estranho que observássemos com conta, peso e medida, como se nos aparecesse pela primeira vez.
Dizia um célebre barbudo – autor, aos 27 anos, com um amigo, da célebre frase “tudo o que é sólido se dissolve no ar” – que “a história acontece em tragédia e repete-se em comédia”. Ninguém disse é que na comédia não podia haver ainda mais mortos e que só percebessem o ridículo da situação aqueles que nesse tempo não se encontrem. Vivemos num mundo que se tornou tão estranho que a operação de mostrar quão estranho é (o mundo) se tornou quase impossível. A manobra que os humoristas fazem de colocar o mundo de patas para o ar, como forma de fazerem nascer o riso, tornou-se difícil num mundo que há muito está de patas para o ar e não nos faz rir.
O livro de Ricardo Araújo Pereira “A Doença, o Sofrimento e a Morte Entram num Bar” permite-nos, de certa forma, um antídoto, ao analisar as nossas razões para rir e sobretudo de que razão é feito o riso. “A gente só ri porque tem consciência da própria morte. É uma pequena anestesia que nos ajuda a suportar melhor essa ideia. Sem a qual a ideia de morte seria insuportável. Continua a sê-la, mas essa pequena epidural, essas pequenas picadas do humor ajudam a suportar o peso da morte. Vamos simplificar isto para ficar mais claro: se a gente acompanhar um prisioneiro que sai da cela e vai até ao cadafalso a rir o tempo todo, pensamos ‘isto é macabro, há qualquer coisa de muito estranho nisto’. Mas essa ideia de ir a rir a caminho da sepultura é, de facto, aquilo que nós fazemos, nós só não sabemos que o cadafalso está a 50 metros”, afirmou o autor ao i.
O riso é uma imperfeição. Tal como a humanidade é uma doença que não cabe no universo. As coisas perfeitas não falham e as máquinas só vão rir quando aprenderem a falhar. Mas também é verdade que só quem falha consegue olhar por cima dos muros, apaixonar-se e ter a pretensão de fazer com que a vida seja infinitamente melhor.
Nuno Ramos de Almeida
Opinião jornal i 12.12.2016
http://ionline.sapo.pt/artigo/537917/ri-te-ri-te-que-logo-choras?seccao=Opiniao_i