Democracia pequenina

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A 13 de julho, Mário Carvalho de Jesus foi condenado a seis meses de prisão (embora com pena suspensa) por em 2015 ter gritado no Parlamento contra o então primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho. As suas palavras foram impercetíveis, mas considerou-se provado o crime de perturbação do funcionamento de órgão constitucional.

Na semana passada, durante um julgamento por idêntico crime, o Ministério Público pediu a condenação de uma mulher que gritou, a partir das galerias da Assembleia da República, “metes nojo ao povo” e “demissão”. Os inquéritos abertos pelo crime de perturbação do funcionamento de órgão constitucional têm vindo a aumentar e 113 pessoas foram levadas a tribunal no espaço de seis anos.

A legalidade das decisões e o respeito que o Parlamento deve merecer não levantam dúvidas, embora o mesmo rigor obrigasse tantas vezes a fiscalizar a forma como os deputados se comportam nessa mesma casa. Mas a cultura de impor respeitinho pelos políticos não deixa de justificar alguma reflexão. Sobretudo quando deslocada para episódios decorridos em pleno espaço público, como aconteceu recentemente com a condenação de um idoso que escreveu uma carta aberta ao deputado Carlos Peixoto.

Num artigo de opinião publicado no jornal “i”, o parlamentar usou a expressão “peste grisalha” para se referir ao envelhecimento da população. E foi irritado com essa referência que o septuagenário escreveu a carta aberta, publicada num jornal local. Condenado em primeira instância, o arguido viu confirmada a decisão pela Relação de Coimbra e terá de indemnizar Carlos Peixoto em 3000 euros, além de pagar 1200 de multa.

O debate político deve ter fronteiras, claro. Mas a excessiva limitação, que em casos idênticos tem sido censurada pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, corre o risco de amputar o direito à indignação. Quem ocupa o espaço público está sempre sujeito à crítica, tantas vezes acintosa e agressiva. Mais ainda titulares de cargos políticos, já que tudo o que dizem e fazem é particularmente sujeito a escrutínio.

O tribunal deve ser o último recurso, reservado a ofensas graves e de impacto inequívoco. Não foi o caso e a carta aberta conseguiu por via da queixa-crime uma publicidade que de outra forma não teve nem teria. A (in)capacidade de alguns políticos lidarem com quem os visa diz muito da sua validade como representantes de quem os elege. E da visão pequenina que têm do debate público e da democracia.

Inês Cardoso
JN 31.10.2016
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