De entre as dezenas de depoimentos que temos ouvido nestas semanas de incêndios, ficou-me um em particular: o de uma mulher que, recém-chegada de uma encosta madeirense, disse a uma pivô que acabara de perder tudo o que tinha e que isso lhe havia trazido uma lição maior: a de que passamos anos a acumular coisas para depois essas coisas serem consumidas num instante. Foi um incêndio. Mas podia ter sido uma tempestade, uma derrocada, um roubo, o abandono que muitos descendentes dedicam àquilo que não lhes é valioso numa herança. E que para os pais e os avós valia muito.
Ainda ouço essa reflexão em alguém num momento extremo, partilhada com voz triste e magoada, mas segura. E escrevo-a aqui para que nunca se apague no remoinho interminável de pensamentos espúrios. Para não esquecer a súbita lucidez de quem desabafava com uma repórter comovida, ainda envolta em nuvens de fumo tóxico.
Minto. Minto quando digo que ela revelou ter perdido tudo. Está a fugir-me o rigor. Ela não perdeu tudo. Perdeu quase tudo – e revelou-o na conversa. O que lhe restou morava em dois ou três sacos aos quais se dirigiu depois da entrevista, movimento que a câmara, com algum excesso no tempo, resolveu captar. Dois ou três sacos. A nossa vida toda cabe aí. E andamos nós a acumular coisas.
Nuno Costa Santos
Sábado Opinião 21.08.2016