Dois ex-membros do Executivo de Passos Coelho e o diretor-geral da ADSE arriscam-se a ter de devolver um total de €36 milhões que transferiram do sistema de proteção social da Função Pública para o governo regional da Madeira. O Tribunal de Contas identificou infrações, fala em ilegalidades, dolo e maquilhagem das finanças do Estado. A bola está agora no lado do Ministério Público que ainda não decidiu se vai levar o caso a julgamento.
O Tribunal de Contas (TC) é claro no seu relatório de auditoria às contas do Sistema de Proteção Social aos Trabalhadores em Funções Públicas (ADSE), divulgado na madrugada desta quarta-feira, 15: Manuel Teixeira, ex-secretário de
Estado da Saúde, Hélder Reis, ex-secretário de Estado do Orçamento, e Carlos Batista, diretor-geral da ADSE, utilizaram excedentes gerados pela ADSE em 2014 para tapar um buraco de €29,8 milhões de euros no Serviço Regional de Saúde da Madeira, resultante de serviços por este prestados que deveriam ter sido pagos com verbas do Orçamento do Estado. Ou seja, a ADSE assumiu e saldou uma dívida que não era sua.
Segundo o TC, os excedentes do subsistema da função pública “foram e continuam a ser utilizados para maquilhar as contas públicas, num contexto de necessidade de atingir as metas acordadas para o défice orçamental.”
Ao mesmo tempo, os três responsáveis decretaram um “perdão” da dívida de € 6,1 milhões da região à ADSE. Essa dívida resultou da retenção pelo governo regional dos descontos feitos pelos funcionários públicos madeirenses para o seu subsistema de saúde.
A 15 de setembro do ano passado (19 dias antes das eleições legislativas), o Governo Passos Coelho-Portas e a ADSE assinaram com as autoridades madeirenses um memorando que estipulou a transferência dos quase €29,8 milhões dos cofres da ADSE para o Sistema Regional de Saúde madeirense. Um ato que o TC considera ser ilegal, já que – lê-se no relatório – compromete dinheiros da ADSE “para fazer face a uma despesa que é do Estado e que devia ter sido satisfeita pela dotação orçamental do Serviço Nacional de Saúde (SNS)”.
De acordo com o TC, essa prática ameaça a sustentabilidade do subsistema de saúde dos trabalhadores do Estado, que o financiam com 3,5% dos seus salários ilíquidos.
Na ótica do TC, a situação é suscetível de gerar “responsabilidade financeira reintegratória” (a reposição de verbas) e também “sancionatória” (multa) por parte de Hélder Reis e Manuel Teixeira. Mas também por parte de Carlos Batista, que autorizou a transferência, sabendo que a ADSE não é, desde 2010, responsável pelo pagamento dos serviços prestados pelo sistema de saúde madeirense aos utentes da ADSE.
O “perdão de dívida” terá sido negociado no âmbito do memorando, passando-se uma esponja sobre um assunto, que o TC já identificara quando analisou as contas da ADSE relativas a 2013: a “retenção ilegal dos descontos dos quotizados da ADSE por parte de organismos do governo regional” e a sua “utilização indevida para fins de âmbito regional”. Ou seja, as contribuições dos funcionários públicos madeirenses ficam retidas nos cofres do governo regional em vez de serem entregues à ADSE.
Esta “retenção ilegal” não é nova nem se circunscreve apenas à Madeira. Quando, há um ano, o TC passou a pente fino as contas da ADSE de 2013 e 2014 (relatórios de verificação interna das contas) e chegou à conclusão que “as situações reiteradas de não entrega do desconto respeitam apenas às entidades das Administrações Regionais da Madeira e dos Açores, que entendem que este constitui receita das regiões. Em 2011 e 2013, as verbas retidas atingiram um total de €10,7 milhões na Madeira e de €14,1 milhões nos Açores.
O relatório divulgado na madrugada desta quarta-feira é, porém, o mais contundente e aquele que vai mais longe. Fala em “instrumentalização do rendimento disponível dos trabalhadores da Administração Pública pelo Governo da República”, de ilegalidade e dolo: “O diretor-geral e o secretário de Estado da Saúde não podiam desconhecer as regras que regulam o sistema de benefícios.”
Como é hábito nestes casos, o trabalho dos auditores foi acompanhado de perto pelos procuradores-gerais adjuntos que representam o Ministério Público junto do TC. O seu parecer sobre os casos estão, em regra, prontos aquando da divulgação pública dos documentos de auditoria. O que não aconteceu desta vez, possivelmente devido à complexidade e delicadeza da matéria, bem como dos valores em causa. A VISÃO sabe que a equipa liderada pelo procurador-geral-adjunto José Vicente continua a analisar os documentos em que se baseou o relatório do TC e o MP se deverá pronunciar em breve sobre uma acusação (ou não) dos dois antigos membros do governo e do diretor-geral da ADSE.
Caso sejam julgados, estes três responsáveis poderão ser condenados a penas pesadas: a devolução à ADSE dos 36 milhões, bem como ao pagamento de uma multa mínima de € 2.550 por cada uma das duas infrações de que são acusados – assunção e pagamento de uma dívida que não era da ADSE e o facto de sancionarem a retenção dos descontos que privou esta entidade de receitas.