Cáritas Europa identifica novas formas de pobreza – trabalho precário, baixos salários e desemprego de longa duração – e desmonta o discurso político em Portugal de que a situação das pessoas melhora porque o desemprego diminui.
Pessoas da classe média desempregadas há mais de cinco anos; pessoas com trabalho mas a ganhar menos do que precisam; jovens com muita pouca ou nenhuma perspectiva de futuro nas zonas rurais. Nestes casos, mesmo passado o pior da crise, é fácil resvalar para a “armadilha da pobreza”, como lhe chama o secretário-geral da Cáritas Europa, Jorge Nuño Mayer. E dela é difícil sair.
Estes fenómenos já existiam mas a crise económica agravou-os. No relatório de 2015 relativo a Portugal, que será apresentado esta quinta-feira em Lisboa, na presença de Jorge Mayer, a Cáritas Europa centra-se nas novas formas de pobreza. São facilmente esquecidas perante a descida da taxa de desemprego e os discursos sobre a retoma da economia, mas não são menos graves, diz Jorge Mayer, que fala antecipadamente ao PÚBLICO a partir de Bruxelas.
“Quando falamos de novas formas de pobreza, estamos a falar de fenómenos que já antes existiam, mas estão a aumentar muito rapidamente”, explica o secretário-geral da organização, presente em mais de 40 países e com sede em Bruxelas. Em Abril será lançado o documento europeu que retrata a situação nos sete países europeus mais afectados pela crise e pelas políticas de austeridade The Crisis Report – Portugal, Irlanda, Grécia, Itália, Chipre, Roménia e Espanha – e que junta, pela primeira vez, uma análise em 22 países sobre pobreza e respectivas políticas sociais.
“Os líderes políticos dizem-nos que mais pessoas voltaram a trabalhar. Mas é preciso ver em que condições o fizeram. Estão a trabalhar, mas não ganham o suficiente para terem uma vida dignificante. Ganham muito menos do que ganhavam há uns anos. Uma pessoa que recebe 400 euros vive na pobreza. Talvez consiga pagar a renda da casa, mas não lhe sobra dinheiro para pagar os livros escolares dos filhos, por exemplo, ou o custo para uma visita de estudo organizada pela escola”, explica. E isso acontece cada vez mais, realça o responsável espanhol. Situações como esta, criadas pela falta de rendimento, empurram as famílias e as crianças para “uma situação de exclusão”.
Também o desemprego de longa duração, que já existia, atinge agora mais gente e de uma forma mais profunda. O tempo passa e é cada vez mais difícil para pessoas com mais de 45 anos e mais de cinco anos no desemprego encontrarem trabalho. Este fenómeno está a colocar as famílias de classe média numa situação mais frágil, argumenta. “Há 10 anos, uma pessoa podia estar desempregada durante um tempo, mas voltava a trabalhar. Hoje, é mais fácil para essa pessoa cair na armadilha da pobreza. A precariedade da classe média é hoje muito maior do que era há seis ou sete anos.”
Passar do tempo
O passar do tempo também acentua clivagens quando o fenómeno é a pobreza rural. Como o desemprego de longa duração ou o trabalho precário, a pobreza rural não surgiu agora, diz Jorge Nuño Mayer. Apenas se acentuou. “Temos de a ver no contexto de uma crise económica que dura há mais de oito anos, em que há uma concentração do investimento económico nas cidades. As zonas rurais são mais deixadas ao abandono do que antes.” No relatório relativo a Portugal, a Cáritas Europa constata que entre as pessoas residentes nas zonas rurais “começam a desenvolver-se problemas mais graves entre os jovens desempregados, como o alcoolismo e o abuso de drogas”. Por “falta de perspectivas”, acrescenta Jorge Mayer.
O documento sobre Portugal, hoje apresentado, retoma os dados da Comissão Europeia (Eurostat) e do Instituto Nacional de Estatística (INE), já publicados. Lembra por exemplo que a pobreza dos trabalhadores aumentou de 9,7% para 10,5% entre 2010 e 2013; que mais de 42% das pessoas desempregadas não conseguiam, em 2013, assegurar o pagamento imediato de bens necessários; ou ainda que o risco de pobreza subiu entre 2012 e 2013, porque o número de casais desempregados aumentou exponencialmente, ao passar de 1530 para 12.065 em apenas três anos (entre 2010 e 2013), expondo assim muito mais crianças ao risco de pobreza.
O documento não revela dados novos. “O valor deste relatório é a informação que as equipas da Cáritas recolhem diariamente no terreno”, esclarece Jorge Nuño Mayer. “Todos os dias vemos como as políticas sociais afectam as pessoas nas suas vidas. Por exemplo, quando o Governo espanhol decidiu retirar apoios aos mais idosos para a compra de medicamentos, a Cáritas Espanha constatou, em pouco tempo, um aumento considerável dos pedidos de ajuda dos idosos. Os idosos são, em muitas famílias de pais desempregados, quem sustenta três gerações [de filhos e netos]. E esse aumento dos pedidos de apoio foi muito visível, nesse caso, como o é noutros.”
Os números relativos a 2015 ainda não são conhecidos. Mas em 2014, 160.608 pessoas recorreram a apoios da Cáritas em Portugal – o equivalente a 63.059 famílias. Em 2013, tinham sido 139.059 pessoas – ou seja 52.967 famílias. Os motivos mais comuns apontados para o pedido de ajuda são o rendimento nulo ou insuficiente (dívidas com água, gás ou alimentação) e a falta de trabalho (desemprego ou emprego clandestino, precário ou mal pago, salários baixos ou em atraso).
Pobreza no trabalho
São esses sinais que o relatório descreve, e onde se pode ler, sobre Portugal, que “as novas formas de pobreza afectam agora as antigas famílias de classe média e as famílias de classe baixa”. São casos que emergem de “situações de desemprego e cortes salariais (principalmente na função pública), de aumento de impostos e de situações de pobreza no trabalho com baixas remunerações, de aumento do trabalho temporário e de trabalhadores que não estão cobertos pelas redes normais de segurança social”, adianta ainda o relatório, que realça que em Portugal, “os trabalhadores são mal pagos e os contratos temporários aumentam, sobretudo nas grandes empresas.”
A Cáritas Europa considera, neste documento, ser “importante enfatizar que a pobreza no trabalho se tornou um problema transversal às pessoas das mais variadas habilitações e idades”. E embora reconheça a importância no apoio ao rendimento do RSI – Rendimento Social de Inserção – e do CSI – Complemento Solidário para Idosos, a organização constata que “a alteração dos critérios” de acesso aos esquemas mínimos sociais, no último ano, nomeadamente no RSI, “reduziu o número de beneficiários elegíveis nestas prestações sociais”. E conclui: “As quantias atribuídas não cobrem as necessidades básicas das pessoas que as usufruem, não conseguindo que a pessoa saia da sua situação de pobreza.”
“Isto acontece independentemente do tipo de Governo”, considera nesta entrevista Jorge Mayer a propósito do novo ciclo de governação em Portugal, deixando entender que é cedo antecipar para cenários. “O importante é entender as políticas sociais como um investimento, e não apenas um encargo, uma despesa.” E conclui: “Se houver boas políticas económicas, haverá boas políticas sociais.”
Ana Dias Cordeiro