1. É um facto bem conhecido que a globalização económica e as relações de interdependência crescente – aceleradas pelas novas tecnologias e por distintas experiências de integração regional – vieram, nas últimas décadas, impor múltiplos condicionamentos à autonomia real dos estados. Essa autonomia, originalmente construída por filósofos e juristas como um “poder soberano”, é ainda o fundamento do direito internacional e das democracias modernas, onde a “soberania popular” se transformou em princípio constitucional e fundamento da legitimidade de todo o poder político.
2. Inversamente, os novos poderes emergentes nas áreas económicas e nos mercados financeiros ampliaram a sua influência à margem das fronteiras territoriais e ameaçam hoje as instituições, as garantias e os valores que arduamente tinham logrado proteção nas instituições públicas do Estado de Direito. Consequentemente, fica perturbado o próprio sentido da representação democrática perante a desresponsabilização objetiva dos eleitos. As escolhas políticas dos cidadãos tornam-se irrelevantes e destrói-se a legitimidade do poder político, abrindo as portas ao populismo e às tentações autoritárias.
3. Na União Europeia manifestam-se hoje perigosamente todos esses sintomas, em consequência da crise económica e financeira, que persiste, mas também como resultado das insuficiências do processo de integração política e da concepção defeituosa da arquitetura da União Monetária, numa Europa tão obcecada com o combate ao défice orçamental que se esqueceu de um outro problema muito mais grave e premente, de que verdadeiramente depende o seu futuro: o défice democrático!
4. As instituições atuais da União Europeia não dispõem de autoridade política suficiente para compensar os egoísmos nacionais, para contrapor às violações da liberdade de circulação promovidas por alguns estados-membros, ao preconceito e à agressividade contra os estrangeiros, cultivados por movimentos da extrema-direita e corroborados pelas políticas prosseguidas impunemente pelos governos da Hungria, da Polónia, da República Checa, da Eslováquia e até, recentemente, pelo parlamento da Dinamarca! Os elevados níveis de interdependência política que a União já atingiu, agravados pela excepcionalidade da situação crítica que atualmente enfrenta, reclamam uma legitimidade política que não está ao alcance da Chanceler alemã ou de outro chefe de governo de qualquer Estado-membro.
5. Nem o Conselho nem a Comissão Europeia gozam da legitimidade política indispensável para exigir aos povos da periferia meridional da União, flagelados pelos efeitos assimétricos do euro e pelas políticas de austeridade impostas pelos credores internacionais, os mais duros sacrifícios. A Alemanha não consegue, nem sequer pelo seu exemplo, impor aos vizinhos do Leste o respeito devido aos tratados que subscreveram. Os burocratas da Comissão não conseguem garantir os fundos requeridos pelo programa de estímulo ao emprego e ao crescimento económico prometido pelo seu Presidente. O Banco Central Europeu responde penosamente às súbitas emergências financeiras provocadas pela ganância especulativa dos mercados internacionais.
6. Perante a desesperada vaga de refugiados que bate à nossa porta, a Europa propõe-se discutir a criação de uma “guarda costeira” para combater os traficantes, pondera novas limitações à soberania territorial dos estados-membros, para castigar os gregos, e prepara-se para implorar a intervenção “redentora” da NATO como paliativo para a sua hipócrita demissão.
7. Não basta denunciar as faltas de solidariedade que quotidianamente testemunhamos. Para conseguir a autoridade que lhe falta, a Europa precisa de mais democracia!
Pedro Bacelar de Vasconcelos
Opinião JN 12.06.2016