1.
Isto de escrever numa situação volátil é sempre complicado. Mas embora possa haver uma ou outra novidade, no fundo, “onde nós chegámos”, já estamos lá. No fundo, na fossa, num buraco, num sítio que o pudor impede de classificar com as palavras duras que se exige. Onde nós chegámos… à situação de uma nação que pouco mais é do que uma província longínqua de um centro europeu constituído por um conjunto de países, a começar pela Alemanha, mas não só, que entende que o seu interesse nacional e a sua “posição na Europa” implica colocar na ordem os países cujos governos e cujos povos pareçam recalcitrantes face ao seu poder. É por isso que o que aconteceu na Grécia devia ter sido um forte sobressalto, mas uma mistura de cobardia e de nonchalance ajudou a aceitar-se aquilo que é uma versão moderna da política de canhoneira, ou de uma Europa moldada aos princípios soviéticos da “soberania limitada”.
2.
O mais grave disto tudo é que não parece incomodar quase ninguém. O mais grave disto tudo é que há quem goste e prefira ser funcionário menor europeu do que político de um país soberano. É muito difícil encontrar sobre esta questão a tradicional divisão esquerda-direita, e, se a procurássemos o que encontraríamos seria contrário ao senso comum tradicional: uma esquerda patriótica, e uma direita rendida a trocar a soberania pelo diktat de uma política económica e de interesses de que gosta e que lhe dá força.
E não, meus senhores, não foi agora com aquilo a que chamam pejorativamente o “orçamento do Costa”, nem foi só (mas também) com as aventuras despesistas de Sócrates, nem com a dívida, nem com o resgate, que isto começou, nem vai acabar. Aliás, considerar que o que se passa é apenas um resultado do país estar endividado e, numa frase de quase traição, tão complacente e displicente é com os nossos interesses nacionais, como a de que “um país com esta dívida não pode ter veleidades de independência”, é quase o equivalente em defender a prisão por dívida, ou pior, a escravatura por dívida.
4.
Mais do que o dinheiro que pedimos ou que devemos, e a nossa capacidade de o pagar, – que, os mesmos que acham que a dívida justifica tudo, sussurram com cinismo para o lado, “já se sabe que tem que haver uma reestruturação da dívida, não se pode é falar dela”, – o que se passa hoje é a coligação de poderosos interesses nacionais (dos outros), financeiros e económicos (também de alguns dos nossos) e a “estrangeirização” de uma elite nacional que perdeu qualquer sentido de que a pertença a uma pátria (palavra hoje maldita à direita) é um valor e não um aborrecimento. “Estrangeirização” não é cosmopolitismo, antes fosse!, é indiferença, e desprezo pelo terreno comum em que se partilha um certo sentido de história e comunidade, no qual, mal ou bem, muitas vezes mal, nos reconhecemos. Mas há mais: é também a suspeita, tão típica dos funcionários e tecnocratas, de que eles, os mestres de Bruxelas, sabem melhor do que nós como se governa um país e não precisam de meter as mãos nessa massa imunda que é a política. Não seria tão bom sermos governados pelos alemães ou pelos énarques ou os diplomados das melhores escolas de gestão do mundo?
5.
O problema não é andar de bandeirinha, convenientemente na lapela, nem agitar o “papão espanhol”, agora tedesco, é perceber esta coisa que é a Europa de hoje: cada cedência de soberania é uma cedência de democracia. Hoje a democracia ou se faz num espaço soberano, onde os votos dos portugueses mandam, ou deixa de ser democracia. O problema da União Europeia como ela está, enrodilhada, confusa e cruel com os refugiados das guerras que acicatou, egoísta e nada solidária, é que se acantonou num centro de poder que nada tem a ver com os desígnios dos seus fundadores. Não só por ser quem é , mas também por se exercer como se exerce.
6.
Partidos conservadores do PPE, cada vez mais à direita, trazendo à arreata muitos socialistas, “governam” hoje Portugal a partir da Europa, dando trabalho às suas miríades de funcionários que decidem sobre o BANIF, ou sobre se meia décima percentual representa uma tragédia grega, sendo que o que os incomoda é que essa meia décima pode servir para acabar com meia décima de “austeridade”. E “austeridade” é hoje a palavra que não designa qualquer política económica, cujos falhanços estão por todo o lado em contraste com os EUA, mas uma política de poder, real e simbólico.
7.
Hoje o keynesianismo, ou qualquer outro modo de ver a economia que não passe pela vulgata designada como “neo-liberal”, em que se formaram muitos socialistas, vários Prémio Nobel da Economia, e vários dos nossos governantes que eram sociais-democratas como Cavaco Silva, é proibido na União Europeia. Há um Tratado Orçamental, que Passos Coelho, que hoje se veste de novo de social-democrata, foi o primeiro a aprovar, que legitima o pensamento único em economia e serve de base ao poder do centro europeu e ao deitar para o lixo da nossa liberdade, soberania e democracia. Há quem ache isto bem. Eu não.considerar que o que se passa é apenas um resultado do país estar endividado e, numa frase de quase traição, tão complacente e displicente é com os nossos interesses nacionais, como a de que “um país com esta dívida não pode ter veleidades de independência”, é quase o equivalente em defender a prisão por dívida, ou pior, a escravatura por dívida.