Mark Zuckerberg, o criador do Facebook, e a sua mulher, Priscilla Chan, foram pais. Este acontecimento por si só já daria notícia nos jornais. Mas o que se tornou notícia foi o facto de o casal ter decidido sublinhar o feliz acontecimento com um gesto de espetacular e “moderna” filantropia: a transferência de 99% das ações do Facebook por eles detidos para a instituição Chan Zuckerberg, com suposta missão de “promover o potencial humano” e a “igualdade”. A dita instituição parece ser uma empresa, não propriamente uma fundação sem fins lucrativos. Por isso mesmo, imediatamente surgiram dúvidas acerca das reais motivações da decisão do casal: filantropia genuína? Planeamento fiscal? As dúvidas, tendo em conta os precedentes, podem ser justificadas, mas essa não é, talvez, a questão mais importante a discutir.
Com as notícias publicadas, ficámos a saber que as ações do Facebook detidas pelo casal têm o valor de 42 mil milhões de euros, isto é, cerca de um quarto da riqueza produzida anualmente em Portugal. Podemos olhar para este número de diversas formas. Podemos tomá-lo como medida de uma extraordinária generosidade. Mas podemos também recebê-lo com espanto: como é possível um só casal, e até jovem, deter uma tal fortuna? Pode haver esforço ou mérito que justifique tal enormidade?
As questões importantes que o gesto do casal suscita são simples: em que tipo de sociedade estamos a viver? Em que tipo de sociedade queremos viver? Queremos viver numa sociedade em que alguns, muito poucos, têm a possibilidade de acumular fortunas descomunais e em que os recursos para o financiamento de necessidades sociais e para a criação de bases que assegurem direitos universais fundamentais dependem de decisões discricionárias desses privilegiados? Ou pelo contrário, preferimos uma sociedade em que os recursos necessários são obtidos por impostos realmente progressivos (isto é, mais elevados para quem aufere maiores rendimentos ou detém mais riqueza) e aplicados segundo decisões tomadas por instituições democráticas, credenciadas e escrutinadas?
Na verdade não se trata aqui de opor fiscalidade a atos de generosidade ou de querer situar apenas no Estado a responsabilidade social. Generosidade é generosidade e deve ser saudada. O que não é aceitável é que se conferiram privilégios a uma ínfima minoria, incluindo facilidades fiscais e toda uma panóplia de mecanismos “legais” que asseguram a construção de fortunas colossais e até irracionais, para depois ficarmos dependentes, enquanto sociedade, da boa ou má vontade, do grau e do tipo de generosidade que cada um desses privilegiados decida optar. Zuckerberg, numa jogada de oportunidade, não fez mais do que um ato filantrópico, uma ação pessoal de cunho caridoso, que se perspetiva assistencialista, num espaço temporal ainda não determinado, ganhando com isso um grande capital reputacional e de valorização de imagem, pois o tecido social em que se move o Facebook é de escala mundial.
A instituição “de cidadania” ou “empresa-cidadã” que se propõe criar tem por detrás a “contribuição voluntária” de milhões e milhões de seres humanos, que consomem os seus produtos. A face mais relevante desta filantropia empresarial é hoje, sem dúvida, a de grande negócio. São cada vez mais as organizações ou empresas especializadas em gerir estas riquezas acumuladas, ou até os dinheiros públicos se a eles puderem deitar mão, obtendo chorudos lucros no processo de fazer chegar umas migalhas ou serviços mínimos aos mais carenciados. Estamos perante uma espécie de nova divisão do trabalho com “nichos de mercado”, incluindo o da pobreza, que visam o lucro mercantil.
A noção de responsabilidade social hoje consolidada a nível europeu inclui um conjunto de princípios que estão felizmente muito para além daquilo que observamos naquelas práticas e, mesmo assim, é muito permissiva quanto a incumprimentos de deveres legais, ou a práticas especulativas de corrupção, entre outras.
O bem-estar social é uma responsabilidade de toda a sociedade e não apenas do Estado. Mas a construção desse bem-estar jamais será possível sem um Estado social de direito democrático.
Carvalho da Silva
JN 06.12.15