O Ministério Público acusa um tal de Peter Boone de manipulação de mercado. Suspeita-se de que o cavalheiro terá dado uma opinião sobre as finanças públicas portuguesas com o objetivo escondido de ganhar umas centenas de milhares de euros: o comentário terá provocado um aumento da taxa de juro da dívida portuguesa, e essa subida ter-lhe-á rendido a tal bela maquia.
Esta história do Peter Boone é mais uma peça dum puzzle diabólico, em que a única boa notícia é sabermos que as autoridades começam a perceber que alguma coisa está profundamente errada na relação entre os chamados mercados, quem os controla, o que move os seus operadores e quem sofre as consequências das suas ações: nós. Melhor, finalmente estamos a perceber como comunidade que há poderes superiores à nossa vontade, às nossas deliberações e que demasiadas vezes a sua lógica não tem que ver com o bem comum, mas apenas com a ganância de meia dúzia de indivíduos. Que há gente que pode manipular o mercado, e que para ganhar meia dúzia de tostões não hesita em mandar para a miséria países inteiros.
Diz que é o mercado. Não, não é mercado nenhum. Os mercados têm – ou deviam ter – regras, modos de funcionamento transparentes e têm sempre e em todos os casos de ser supervisionados pelo poder político, aquele que, numa democracia, é designado pelo povo. Um mercado que não funciona de forma transparente, um mercado de que não percebemos a lógica, que tem comportamentos sistematicamente irracionais pode ter muitos nomes, mas não o nome de mercado.
Um exemplo? Nada de substancial mudou na nossa economia, desde esse artigo do Boone. As nossas taxas de emprego são até mais baixas, o nosso endividamento maior, o volume das nossas exportações depende muito de produtos de baixo valor acrescentado, de termos perdido meio milhão de jovens, de não ter existido uma reforma digna desse nome nos últimos cinco ano, as nossas finanças públicas continuam na corda bamba. Mas, agora, as nossas taxas de juro são das melhores deste mundo e do outro. Diz que é da confiança. Agora há confiança a dar com um pau. Não se sabe muito bem do que se fala quando se fala nessa confiança. Não nos nossos dados macroeconómicos fundamentais. Confiança, pronto.
Bem sabemos que um dos fenómenos perniciosos (entre muitos benéficos) da globalização foi a vitória do poder económico sobre o político: o económico é mesmo global, o político permaneceu local (o Edmund Burke continua a ter razão) e sobretudo por isso incapaz de o domar por muitas tentativas realizadas de criar entidades transnacionais ou de espaços mais ou menos politicamente integrados.
Talvez pouco possamos fazer como comunidade – e pequena – contra essa realidade, mas há armadilhas em que não podemos cair, tentações que temos de evitar. Ter, por exemplo, a noção de que no momento em que utilizamos os “mercados” como arma de arremesso político estamos a deixar que um Boone qualquer valha mais do que o nosso voto. Estarmos perfeitamente conscientes que o argumento “ai os mercados que não querem ver este ou aquele no poder” é antidemocrático, que é um insulto à nossa capacidade de decidir o futuro.
Não há outra forma de o dizer, quem dá estes argumentos para suportar uma posição política está a atuar contra a democracia, está a apelar a uma verdadeira ditadura, tão forte e tão efetiva como uma que nos impeça de votar.
Já aqui escrevi que me preocupam vários pontos dos programas do BE e do PCP. Aspetos ideológicos, ideias de que discordo frontalmente e que acredito podem ser muito más para o país. Mas preocupo-me infinitamente mais quando vejo e ouço gente que me habituei a respeitar, alguns com que partilho convicções, a lutar contra um possível governo que junte PS, BE e PCP utilizando o argumento de que os mercados nos penalizarão por causa disso. Não me perturba que alguns empresários pouco esclarecidos deem entrevistas a falar dos sacrossantos mercados. Como me deixa quase indiferente que jornais de extrema-direita não façam outra coisa que não seja aterrorizar as pessoas com um milésimo de ponto na subida dos juros – ficam até bem à vista os propósitos. Agora, ver homens e mulheres que me habituei a respeitar, altos dirigentes de partidos estruturantes da nossa democracia, a terem esse discurso, é aterrador. É que uma coisa é lutar por aquilo em que se acredita dentro do respeito pelos valores democráticos, outra é esquecer esses valores.
Pedro Marques Lopes
Opinião DN 01.11.2015