Entre meados da década de 90 e 2009 Portugal conseguiu resultados muito significativos na redução das várias dimensões da pobreza monetária. A taxa de pobreza registou uma diminuição de 4,7 pontos percentuais passando de 22,5% da população em 1993 para 17.9% em 2009. A intensidade da pobreza, uma medida de quanto pobre são os pobres, reduziu-se igualmente de forma significativa.
Particularmente significativa é a evolução da taxa de pobreza dos idosos em Portugal, que, num período de 15 anos, se reduziu de cerca de 40% em 1993 para próximo de 21% em 2009. Infelizmente, redução semelhante não ocorreu com a pobreza infantil, que permaneceu bastante elevada.
Apesar da melhoria verificada nos principais indicadores de pobreza Portugal continuou, porém, a apresentar valores de pobreza superiores ao do conjunto dos países da UE.
A profunda crise socioeconómica que afectou as economias desenvolvidas a partir de 2008, com reflexos profundos em Portugal após 2010, traduziu-se numa clara inversão deste ciclo de diminuição da pobreza.
As políticas de austeridade implementadas a partir desse ano, e em particular após a assinatura do acordo com a Troika assinado em 2011, traduziram-se num inequívoco agravamento das condições de vida da população e num processo de empobrecimento que afectou largos sectores da população.
Entre 2009 (último ano pré crise e pré medidas de austeridade) e 2013 (último ano de que dispomos dados do INE) a taxa de pobreza aumentou de 17,9% para 19,5%. Este valor reconduz-nos aos níveis de pobreza registados no início do século. De facto, é necessário recuar a 2003 para encontrar um nível de pobreza superior ao verificado em 2013. A intensidade da pobreza alcançou em 2013 o valor de 30,3%. Este valor constitui não somente um pesado agravamento face aos valores ocorridos nos anos anteriores mas constituí mesmo o valor mais elevado desde o início da actual série em 2004. Comportamento similar registaram, como veremos, os indicadores de privação material, traduzindo uma forte degradação das condições de vida das famílias.
Uma das consequências mais dramáticas da crise económica e das políticas seguidas nos anos recentes foi o forte agravamento do número de crianças e jovens em situação de pobreza: a taxa de pobreza das crianças e dos jovens aumentou, entre 2009 e 2013, mais de três pontos percentuais passando de 22.4% para 25.6%.
O forte agravamento do desemprego, os cortes efectuados nos rendimentos do trabalho e nas pensões, o retrocesso generalizado das transferências sociais e o acentuar da tributação dos rendimentos salariais e pensões traduziram-se inequivocamente num acentuar das situações de pobreza pré-existentes, mas igualmente na criação de novas bolsas de pobreza constituídas por sectores da população até então relativamente imunes ao fenómeno da pobreza.
O padrão do processo de empobrecimento seguido em Portugal nos anos mais recentes pode ser observado utilizando os dados dos inquéritos às famílias realizados anualmente pelo INE. Se dividirmos a população portuguesa em decis de rendimento, isto é se construirmos dez escalões de rendimento começando com os 10% mais pobres e terminando nos 10% mais ricos podemos analisar como evoluíram os respectivos rendimentos.
O gráfico seguinte apresenta a evolução dos rendimentos familiares entre 2009 e 2013 ao longo da escala de rendimentos:
Fonte: INE, ICOR 2010 e ICOR 2014
Todos os decis registam um decréscimo do seu rendimento disponível como consequência da profunda crise económica e das políticas seguidas. O rendimento dos 10% mais ricos regista um decréscimo de cerca de 8%. Os rendimentos dos decis 3 a 7 descem menos de 7%. O rendimento dos 10% mais pobres diminui 24%!
As alterações introduzidas nas transferências sociais, em particular no RSI, no CSI e no Abono de Família foram determinantes no aumento da pobreza e, simultaneamente, no agravamento das condições de vida das famílias mais pobres. O recuo das políticas sociais, no auge da crise económica quando elas mais se revelavam necessárias, constituiu inequivocamente um factor de empobrecimento e de fragilização da coesão social.
Mas esta crise colocou também em evidência a fragilidade das metodologias e dos indicadores económicos mais utilizados para medir a pobreza monetária. O cálculo do limiar de pobreza oficial é definido pelo Eurostat e pelo INE como o equivalente a 60% do rendimento mediano por adulto equivalente. A linha de pobreza em cada ano é, assim, definida de forma relativa, estando dependente do nível e da distribuição do rendimento verificada nesse ano e, em particular, do valor do seu rendimento mediano. Em períodos de recessão económica, a queda dos rendimentos familiares pode conduzir à descida do valor do rendimento mediano e, consequentemente, à diminuição do valor da linha de pobreza. Esta “armadilha do rendimento mediano” é particularmente sensível a situações como a portuguesa em que a diminuição dos rendimentos de trabalho e das pensões afectou profundamente a zona da distribuição do rendimento onde se situa o rendimento mediano.
Uma consequência imediata da desigual descida dos rendimentos familiares atrás apresentada é a quebra no valor “oficial” da linha de pobreza. O limiar de pobreza mensal para um indivíduo que viva só reduziu-se, ao longo destes anos de crise, de 434 euros em 2009 para 411 euros em 2013. Se, alternativamente, considerarmos um casal com dois filhos menores o limiar de pobreza correspondente a esta família desceu de 911 euros para 864 euros no decorrer do mesmo período.
Uma consequência desta queda da linha de pobreza é que muitos indivíduos e famílias que anteriormente eram considerados pobres “abandonaram” a situação de pobreza artificialmente porque a linha de pobreza baixou apesar de os seus recursos não terem aumentado ou terem mesmo diminuído.
Neste contexto, os indicadores de pobreza oficiais somente de uma forma muito mitigada, traduzem a real deterioração das condições de vida da população e tendem a subestimar o efectivo agravamento das situações de pobreza. De acordo com os dados oficiais a taxa de pobreza em Portugal passou de 17.9% em 2009 para 19.5% em 2013. Este aumento da incidência da pobreza é claramente insuficiente para explicar o agravamento da pobreza percepcionado pelas organizações que no terreno se confrontam com a realidade da pobreza e da precariedade social.
No entanto, na bateria de indicadores sobre pobreza e exclusão social do Eurostat existe uma alternativa que permite atenuar ou mesmo anular esta “armadilha”. A utilização da “linha de pobreza ancorada num determinado ano” permite estimar a linha de pobreza num dado ano inicial de forma relativa e utilizar o valor real (actualizado pelo IPC), dessa linha, como limiar de pobreza nos anos subsequentes. É uma forma de aproximar, ainda que parcialmente, a linha de pobreza relativa de uma linha de pobreza absoluta, não condicionada pelas oscilações do rendimento mediano(2).
Utilizando esta linha de pobreza alternativa o INE estimou que entre 2009 e 2013 a incidência da pobreza registou um agravamento de 6.8 pontos percentuais, subindo de 17.9% para 25.9% Este valor traduz de forma mais realista a alteração efectiva das condições de vida das famílias mais carenciadas em Portugal no decorrer da presente crise. Ele significa igualmente que cerca de 2.7 milhões de portuguesas e de portugueses se encontravam em 2013 em situação de pobreza.
Utilizando esta mesma metodologia é possível identificar que um dos sectores mais afectados pelas políticas de austeridade implementadas no nosso país são as crianças e os jovens. A proporção de crianças e jovens habitando em famílias pobres aumentou, no mesmo período, de 22.4% para 31.1%. Esta situação é particularmente preocupante na medida em que mesmo no ciclo anterior de redução dos indicadores de pobreza os resultados alcançados para retirar as crianças e os jovens da situação de pobreza se tinham revelado claramente insatisfatórios. Qualquer política que vise uma efectiva redução da pobreza em Portugal terá que dar particular atenção à situação de fragilidade social das crianças em famílias pobres.
A situação da população idosa apresenta hoje características diferentes daquela que existia nas décadas anteriores. A forte redução da pobreza do conjunto da população idosa registada até 2009 manteve-se, de alguma forma, nestes anos de crise embora apresentando traços contraditórios. De acordo com as estatísticas oficiais a taxa de pobreza dos idosos ter-se-ia reduzido entre 2009 e 2013 de 21% para cerca de 15.1%. Neutralizando o efeito da queda da linha de pobreza, a evolução verificada seria a oposta com um agravamento da taxa de pobreza dos idosos para 25.5%.
A evolução contraditória da incidência da pobreza dos idosos no decorrer do processo de ajustamento merece uma análise mais cuidada das transformações ocorridas no seio deste grupo etário e da sua relação com o conjunto da população. Rodrigues e Andrade (2014), num estudo em que analisaram a evolução da pobreza dos idosos até 2010, identificaram uma crescente heterogeneidade no seio da população idosa tendo concluído que a redução dos valores globais da incidência da pobreza deste grupo era acompanhada pela prevalência de bolsas de pobreza extrema, principalmente entre os idosos mais velhos e que vivem isolados. Destacaram igualmente a importância das políticas sociais dirigidas especificamente a este grupo social (Pensões sociais, CSI, etc.) na diminuição passada da incidência da pobreza dos idosos.
A forte redução destas prestações sociais como consequência do processo de ajustamento não poderia deixar de se reflectir no atenuar do seu efeito equalizador na pobreza dos idosos.
Por outro lado, a direcção oposta na evolução da pobreza dos idosos registada pela taxa de pobreza oficial e pela taxa de pobreza ancorada em 2009 parece sugerir que uma proporção significativa dos mesmos se situa em níveis de rendimentos próximos dos valores da linha de pobreza, sendo a sua taxa de pobreza fortemente influenciada pelo limiar de pobreza seleccionado(3).
A análise da evolução global da pobreza não é só por si suficiente para uma verdadeira compreensão do fenómeno da pobreza e para a definição de políticas que possibilitem a sua redução de forma sustentada. Torna-se necessário identificar quais os sectores da população mais vulneráveis à incidência e à intensidade da pobreza, isto é, identificar quem são os pobres em Portugal e qual o seu nível de défice de recursos.
O quadro nº 1, que possibilita avaliar a incidência e a intensidade da pobreza segundo a composição por agregado familiar em 2013, evidência claramente a grande precariedade duma parte significativa das crianças no nosso país. Utilizando os valores da taxa de pobreza oficial, que como vimos subestima a taxa efectiva, é possível identificar os dois grupos mais vulneráveis da população: as famílias monoparentais e as famílias alargadas com 3 e mais crianças, ambas com uma taxa de pobreza de 38.4%. São igualmente as famílias com 3 e mais crianças aquelas que apresentam uma maior intensidade de pobreza. O conjunto de famílias com crianças dependentes apresenta uma taxa de pobreza (23.0%) que é 7.2 pontos percentuais superior à das famílias sem crianças (15.8%). A observação da distribuição da população pobre pelos diferentes grupos permite verificar que 60.4% da população pobre corresponde a famílias com crianças.
As famílias unipessoais, composto predominantemente por idosos vivendo sós, apresenta igualmente níveis de pobreza superiores ao do conjunto da população (23.1%) o que parece confirmar o que atrás foi dito quanto à heterogeneidade da população idosa.
A análise da incidência da pobreza de acordo a condição perante o trabalho (Quadro nº 2) permite evidenciar dois outros traços característicos da pobreza actual em Portugal: em primeiro lugar a elevada taxa de incidência da pobreza entre a população desempregada (40.5%) traduz claramente as consequências sociais do forte agravamento do desemprego e da progressiva desregulamentação do mercado de trabalho. 28% da população pobre em idade adulta está desempregada. A intensidade da pobreza dos indivíduos desempregados revela-se igualmente bastante elevada.
Em segundo lugar, a constatação de que a inserção no mercado de trabalho não é só por si suficiente para evitar as situações de pobreza: cerca de 10,7% dos empregados são pobres, correspondente a 27.9% dos adultos em situação de pobreza.
Por último, o quadro nº 3, confirma muito do que já foi apresentado quanto à situação de precariedade das crianças e dos idosos em Portugal. As crianças e os jovens apresentam não só a taxa de pobreza mais elevada dos 3 grupos etários considerados (25.6%) mas igualmente a maior intensidade de pobreza. 23.5% da população pobre em Portugal é constituída por crianças e jovens dependentes. Situação inversa ocorre com o conjunto da população idosa que com uma taxa de pobreza de 15.1% representa 15.4% do total da população pobre.
Também neste âmbito os dados disponibilizados pelo INE são elucidativos. A taxa de privação material alcançou em 2013 o valor de 25.5% e a proporção de famílias em situação de privação material severa foi de 10.9%. Estes são os valores mais elevados de toda a série publicada pelo INE desde 2004.
A leitura cruzada dos indicadores de pobreza monetária e de privação material converge para uma avaliação de como mudou o país e as condições de vida da população: praticamente todos os indicadores apontam consistentemente para um aumento da pobreza e da exclusão social, quer essa análise tenha como base os seus recursos monetários ou a sua capacidade de aceder aos bens materiais e de enfrentar de forma satisfatória os desafios quotidianos.
(1)Este texto sintetiza diversas tomadas de posição expressas pelo autor no blog “Areia dos Dias”, bem assim de parte dos contributos do autor para a elaboração de uma “Estratégia para a Erradicação da Pobreza” promovida pela EAPN-Portugal. O texto agora apresentado beneficiou, assim, de contributos múltiplos dos participantes na elaboração dessa estratégia e da possibilidade que pertencer a um espaço de discussão tão rico e plural viabiliza. Um agradecimento particular ao INE pela disponibilização da informação suplementar referente ao ICOR 2014.
(2)Note-se que esta linha de pobreza ancorada no tempo continua a ter o seu valor original calculado de forma relativa, tendo como referencial uma dada proporção do rendimento mediano. No entanto, nos anos subsequentes esse valor deixa de estar dependente das variações de rendimento que possam ocorrer.
(3)Note-se que esta hipótese e consistente que a baixa intensidade de pobreza da população idosa registada em vários estudos.