Coisa incomum em Portugal é a persistência cívica e cultural de Maria do Rosário Gama, à frente da Associação dos Pensionistas e Reformados, a APRE, numa batalha sem tréguas às políticas contra os idosos (chamemos-lhe assim), denunciando propósitos de medidas desumanas, roubos e confiscos, recusando sempre o destino de miséria que este governo parece ter lançado sobre pensionistas e reformados. Maria do Rosário Gama, que foi professora prestigiadíssima do ensino secundária, abraçou esta causa e eu penso nela, na sua imagem de determinação, a correr entre a esperança e a crueldade, com os seus cabelos de prata, a fazer acenos de esperança e a dizer que é preciso lutar, sempre.
Lembrei-me agora outra vez do seu rosto e da sua imagem de resistente, quando as sombras negras voltam a pairar sobre a Segurança Social e sobre os direitos de pensionistas e reformados. De facto, o governo de Passos Coelho & Paulo Portas (o do “cisma grisalho”) enviou para Bruxelas, como linha programática do Programa de Estabilidade, a garantia de fazer uma «poupança» de 600 milhões de euros nas pensões. O simples anúncio da medida levantou tal celeuma que passou à categoria de medida silenciosa, não se fala mais na “poupança”. Mas é uma “poupança” escondida com rabo de fora. Dizem que ontem, em entrevista ao canal de TV da Bloomberg, Maria Luís Albuquerque “deixou escapar que a prioridade da direita Passos/Portas para a próxima legislatura é reformar o sistema de pensões, ou seja, fazer o corte de 600 milhões de euros”. E, no documento dos economistas que elaboraram para o PS o retrato da macroeconomia portuguesa e sugeriram medidas para um década, a descida da TSU para as empresas e para os trabalhadores significa um rombo na Segurança Social que nos deve deixar inquietos, pois a Segurança Social e um dos esteios fundamentais do Estado social. A isso acresce que o líder dos economistas, Mário Centeno, veio falar numa dicotomia estranha, que espero não faça escola nas hostes socialistas. “Ou se cortam as pensões ou se criam postos de trabalho”.
É bom que estes conselheiros económicos tenham memória da forma absolutamente brutal como pensionistas e reformados foram tratados nos últimos anos. E façam também contas a esse sofrimento e a essa dor que têm sido verdadeiras vergonhas de Portugal.
Repito aqui um texto que escrevi sobre esta questão, com palavras de indignação e denúncia, e ofereço-o a Maria do Rosário Gama. Ei-lo:
“Talvez não haja exemplo de maior desumanidade — prática política verdadeiramente criminosa –, do que a relação conflitual que o poder instalado, segundo o figurino da Troika, estabeleceu com a geração mais velha, esse universo de pessoas que passou uma vida inteira a trabalhar, suportou desigualdades e servidões, comeu o pão que o diabo amassou, chega ao fim da linha às vezes numa situação socialmente frágil, e que ainda sustenta filhos e netos, cujas vidas este governo desgraçou. Essa geração mais velha é tratada agora com total desprezo, como se viver mais tempo fosse um pecado capital, que tem de pagar caro, em sofrimento e dor. Não percebem esses tipos que, assassinando a esperança aos mais velhos da tribo, estão, também, a matar os horizontes de futuro dos mais jovens. A grande maioria vive a equação dos dias com a sobriedade possível, conta os tostões que restam para perceber se ainda pode ir à farmácia comprar os medicamentos que o médico prescreveu, ou se o dinheiro do mês, ferido por cortes injustos, ainda dá para prolongar a sopa. Querem muito pouco, já falham as forças para a indignação do protesto, encontro muitos que me dizem apenas quererem que os deixem viver os dias que restam em sossego, e se possível (“não é pedir muito, senhor”) não lhes retirem o sol que gozam como benesse suprema, num banco de jardim ou colados a um muro branco, ou de pedra larga, no resguardo quotidiano do Inverno. Às vezes, estão sozinhos, falam para si próprios as agruras da vida, ou acompanham as companheiras de uma vida nessas deambulações pelos bairros da cidade ou pelo largo da aldeia, onde os vizinhos são a solidariedade de proximidade que garante a felicidade possível dos dias. São felizes nessa precariedade, nesse padrão de vida austera, e muitos dizem-me que são felizes assim e só temem que venha o dia em que lhes tirem o sol e os remetam para aqueles lares que são espécie de armazéns onde se aguarda a vez de morrer. Os que eles temem, estão na comodidade fofa dos gabinetes, vivem à grande, não se lhe conhecem lágrimas sobre o quotidiano. Esses configuraram o país a uma austeridade demencial, que faz da vida um deve-haver de morte, e às vezes escapa-lhes a boca para a verdade e não disfarçam que os velhos quanto mais cedo partirem melhor, pois o universo da velhice é, na perspectiva deles, improdutivo e só dá despesa. Uma vergonha.
Fiquei a matutar nisto porque li o artigo de Pacheco Pereira, no “Público”, intitulado “Os velhos: não é possível exterminá-los?”, que é uma radiografia cruel sobre o que se está a passar em Portugal com essa geração, o que representa um retrocesso civilizacional lamentável. É um longo texto em que, na parte final, o autor utiliza a metáfora sarcástica de Jonathan Swift (“Swift escreveu em 1729 uma sátira sobre a pobreza na Irlanda chamada Uma moderna proposta para evitar que as crianças dos pobres irlandeses sejam um fardo para os seus pais e o seu país e para as tornar um benefício público).
Pacheco Pereira escreve logo a seguir: “Aconselhava os pobres a comerem os filhos, como meio de combater a fome, “grelhados, fritos, cozidos, guisados ou fervidos”. Na verdade, quando se assiste a este ataque à condição de se ser mais velho — um aborrecimento porque exige pagar reformas e pensões, faz uma pressão indevida sobre o sistema nacional de saúde, e, ainda por cima, protestam e são irreverentes –, podia avançar-se para uma solução mais simples. Para além de os insultar, de lhes retirar rendimentos, de lhes dificultar tudo, desde a obrigação de andar de repartição em repartição em filas para obter papéis que lhe permitam evitar pagar rendas de casa exorbitantes, até ao preço dos medicamentos, para além de lhes estarem a dizer todos os dias que ocupam um espaço indevido nesta sociedade, impedindo os mais jovens de singrarem na maravilhosa economia dos “empreendedores” e da “inovação”, será que não seria possível ir um pouco mais longe e “ajustá-los”, ou seja, exterminá-los?”
Estas palavras de Pacheco Pereira fizeram-me lembrar um grande escritor italiano, que eu cita com alguma frequência. Élio Vittorini, escreveu no pós-guerra uma novela que intitulou “Consideram-se mortos e morrem”. Agora, aqui, neste país do sul, tantos anos depois desses anos que respiravam tragédia e pobreza, lembro-me da ficção de Elio Vittorini para dizer que eles, os nossos homens do poder, consideram os velhos quase mortos. E querem matá-los”.