Especialista em Segurança Social, Teresa Garcia alerta que um dos problemas do sistema de pensões em Portugal é a falta de transparência com que ao longo dos anos ele tem sido gerido e as mudanças, que o tornam opaco para a generalidade da população. E defende que os decisores políticos devem actuar “fortemente no crescimento económico, na educação e na taxa de natalidade”, essenciais para que ele funcione. Quanto às propostas do PS de reduzir a TSU, discorda “em absoluto”, porque agravam o problema da receita.
Temos um problema de sustentabilidade no sistema de pensões em Portugal?
O sistema é sustentável, assim o queiramos. A Segurança Social resultou de um processo histórico de urbanização e de industrialização das sociedades em que muitos dos laços familiares se perderam e foi a maneira de os políticos gerirem massas operárias. A ciência económica tem de aprender com a história. A crise de 2008 deveria ter sido um momento para pensarmos que temos de encontrar uma solução e que ela não está dentro do sistema. Quando falamos na sustentabilidade da Segurança Social, estamos a falar na sustentabilidade da própria sociedade. A solução tem de passar por uma revisão da estratégia económica no seu sentido amplo. É fundamental termos dados claros, para sabermos o que não está e o que não correu bem. Não basta dizer que não é sustentável.
O que é que correu mal?
Estamos a falar num sistema que assenta na repartição. O dinheiro que é recolhido, sob a forma de receita, é imediatamente utilizado para pagar despesa. Isto é importante porque torna o sistema imune a outro tipo de utilização. Por outro lado, quando são estabelecidos, estes sistemas de repartição têm muito menos despesa do que receita, o que significa que durante alguns anos há saldos positivos, os quais devem ser salvaguardados para o seu objectivo: pagar as pensões. Aconteceu assim no caso português? Desconfio que não. Chegámos à fase de maturação do sistema e todos os estudos previam isto [que íamos ter um aumento da despesa]. Tínhamos que ter o dinheiro para pagar pensões.
Ao canalizar a receita directamente para a despesa, diz que o sistema fica mais imune à manipulação. Acontece o mesmo com a gestão dos saldos positivos?
Nesse caso não há imunização em relação ao risco político. Basta, por exemplo, haver legislação quanto à afectação de activos, que obriga a que o fundo de estabilização financeira da Segurança Social compre dívida pública numa terminada percentagem. Se isto acontece num sistema de repartição, não percebo esta ideia das contas individuas, porque elas também requereriam uma aplicação no mercado de capitais, com todas características inerentes a esse mercado.
Tem ganho peso a ideia de que devia haver contas individuais. É uma questão ideológica ou faz sentido?
É uma questão ideológica, de ignorância e de credibilidade. Uma das razões de ser da Segurança Social tem a ver com a miopia dos indivíduos que, por natureza, dão mais importância ao curto prazo do que ao longo prazo. A Segurança Social vem lutar contra esta tendência natural, enquanto esta conversa de cada um por si vem alimentar aquilo que, por defeito, é próprio dos indivíduos. A Segurança Social é universal e obrigatória, apanha toda a gente, os prudentes e os imprudentes, dentro da proporcionalidade do seu rendimento, para que todos sejamos prudentes e consigamos um certo nível de bem-estar. Todos temos de contribuir para um óptimo na óptica daquilo a que se chama um estado paternalista, mas no bom sentido. Esta obrigatoriedade faz com que, em termos agregados, aquilo que se contribuiu deva ser igual ao que se vai receber em termos agregados. Em termos individuais, haverá indivíduos que vão receber mais do que contribuíram e outros que não chegarão a receber nada, porque morrem. Se todos começamos a puxar a manta, não vamos a lado nenhum. É um discurso que não devia existir.
De tempos a tempos, esse discurso é fomentado pela classe política, quando se fala em plafonamento, por exemplo, ou quando se colocam os velhos contra os jovens.
Sugeria que se fizesse um estudo das carreiras contributivas dos políticos. Esse discurso é uma manipulação da opinião pública muito grave.
Embora seja uma defensora do sistema de repartição, reconhece que ele tem de ser calibrado? Em 2007 foi criado o factor de sustentabilidade, que fazia reflectir nas pensões o aumento da esperança média de vida, por exemplo.
O sistema tem algumas condições de bom funcionamento: crescimento económico, crescimento dos salários, políticas de natalidade. O envelhecimento não é um problema que está aí apenas por agora, é um ganho civilizacional que vai continuar. Temos de actuar fortemente no crescimento económico, na educação e na taxa de natalidade. Aqui é que temos de actuar, porque o sistema de repartição é sensível a isso, mas devia ter a sua garantia no fundo de estabilização para ciclos de baixa e para responder ao envelhecimento populacional do qual estávamos à espera. O sistema tem sofrido ajustamentos correctos, porque como sistema que é não tem estado imune à manipulação, até por parte dos indivíduos, sejam empregadores ou trabalhadores. No cálculo do benefício a remuneração de referência foi, durante muito tempo, os melhores dez dos últimos 15 anos. Mas a dada altura também se percebeu que foi manipulado e que muitos empregadores, ou por iniciativa deles ou dos próprios trabalhadores, só começavam a descontar a 15 anos do fim da carreira contributiva. O sistema foi objecto de manipulação, foi. Tentou-se corrigir, tentou. A partir de 2000 passou a contabilizar-se a média de toda a carreira contributiva e desse ponto de vista foi um ajuste correctíssimo. Atendendo ao valor da despesa, esta indexação à evolução da esperança média de vida feita em 2007 não me parece errada. Enquanto não conseguimos virar o ciclo e tentamos ganhar tempo, vamos dar um bocadinho menos a todos, é um mal menor. O que me custa é a falta de transparência em relação à própria fórmula de cálculo e uma idade da reforma que todos os anos muda [decorrente das alterações feitas pelo actual Governo].
O relatório recentemente apresentado pelo PS propõe uma redução da TSU, que mais tarde se irá reflectir em pensões mais baixas. Faz sentido?
Discordo em absoluto de mexidas do lado da receita. Neste momento, não há condições para mexer do lado da receita. Estamos com um problema e estamos a agravá-lo, sem termos a certeza quanto à recuperação futura dessa receita. Se isto for por diante entramos num beco sem saída. Todos devemos ser apologistas de sistemas o mais simples possíveis para que todos os possamos entender. Já encontrar receitas alternativas para a Segurança Social seria muito importante.
Onde é que se poderá ir buscar receita?
Teria de ser junto do capital, aos montantes transaccionados em bolsa, por exemplo.
Há quem defenda um sistema semelhante ao de alguns países nórdicos, em que parte dos descontos visa o bem comum e depois há contas individuais obrigatórios. Admitiria uma solução desse tipo?
Não. O sistema sueco, por exemplo, está indexado ao crescimento económico e não é justo que o benefício esteja dependente de um ciclo. Se me reformo num momento de alta recebo mais, o outro que se reforma num momento de baixa recebe menos, tendo tido o mesmo contributo para a sociedade. Sou muito crítica em relação a esse tipo de indexação, até porque não estamos livres de haver crises do sistema financeiro.
O sistema do fisco é muito mais eficiente, por vezes até sobre-eficiente, em comparação com a Segurança Social. O que explica isso?
É uma coisa surpreendente. Não há um investimento na transparência do sistema. É preciso que nos mostrem os dados que revelem que o sistema não é viável. O montante de dados necessários para a boa gestão, requer um investimento em informática, se ele não existe numa altura em que temos desenvolvimento colossais da tecnologia temos de perguntar porquê. Essa é uma boa exigência que os cidadãos em conjunto deviam fazer. É fundamental ter dados actualizados. A conta da Segurança Social tem um desfasamento temporal que é inadmissível. Podemos ser até levados a pensar se a máquina não é refém de orientações políticas.
As mudanças no factor de sustentabilidade e o aumento da idade da reforma forma, foram decididas para responder a um problema orçamental sem que se conheça um estudo sobre o impacto da reforma. Estas decisões são um risco para o sistema?
Como se costuma dizer, está-se a navegar à vista. E se agora lhe cortarem a receita [como sugere o PS] não resiste mesmo. Sem uma clara e transparente administração não vamos a lado nenhum. Estamos a entrar em caminhos que não auguram nada de bom. Não vejo nem na Alemanha, nem na França esta premência de alterar e alguns países que fizeram alterações, como a Hungria ou a Polónia, já recuaram nalgumas ousadias. Com a reforma de 2007, as taxas de substituição já vão para 40% a 60% em 2020. Não sei se alguém anda a ver isto, já vai ter um impacto substancial. Já se devia ir informando as pessoas. Não acredito que a taxa de poupança vá colmatar as quebras previstas no valor da pensão. Não se percebe como é que esta idade legal da reformar acaba por ser flexível quando o próprio mercado de trabalho não quer velhos. Caímos no dilema de que somos muito novos para nos reformarmos e velhos para trabalhar. Este problema não está a ser resolvido.
Quais são as alternativas?
A prioridade deve ser uma política que ponha o sistema de Segurança Social acima de uma ideologia. Temos um sistema de repartição, vamos olhar muito objectivamente para os dados e tentar perceber as causas de algum défice que poderá existir e por que razão não temos um fundo de estabilização financeira de maior dimensão. Enquanto não houver este pragmatismo, desvinculado de uma ideologia não me parece que vamos a algum lado. Temos de criar uma administração eficiente e, diagnosticados os factores de risco, não deixar que o sistema continue exposto a esses factores e evitar que, volta e meia, o sistema sirva para resolver outros problemas.
Entrevista de Raquel Martins a Teresa Garcia, professora do ISEG