As controvérsias com Passos Coelho decorrem sempre de subprodutos de uma questão maior que fica muitas vezes oculta: a natureza dos “empregos” que tinha, as formas de remuneração, as empresas em que trabalhava e a sua especial relação com o poder político, a natureza dos empregadores e o modo como funcionava este “sistema”, como já acontecera na Tecnoforma. É possível que a maioria das coisas que se passavam (e passam) nesse mundo de negócios encostados ao poder político nacional ou autárquico, sempre em modo de “bloco central”, sejam legais numa base de interpretação estrita da lei, ou pelo menos da lei à época.
Mas é aqui e daqui que surgem as “redes” de que falava a procuradora-geral da República numa entrevista que só pode espantar quem queira ser “espantado”. Não estou a implicar o primeiro-ministro em nada, mas a implicar o “meio” em que esteve envolvido, como aliás muitos políticos em ascensão numa determinada época, porque “o meio”, esse sim representa um problema. Um problema que tem sempre um aspecto cívico (o tal que na interpretação de Pina Moura e de Miguel Relvas não era atingido pela “ética republicana”), mesmo quando não tenha um aspecto criminal (que o “meio” favorece).
Onde há dinheiro aparecem “empresas” para o ir buscar
Uma miríade de pequenas empresas associadas aos negócios com os bombeiros, a segurança, serviços informáticos, consultoria, defesa, saúde, muitas fundadas por antigos militantes partidários, das “jotas” em particular, do PS e do PSD, para responderem a oportunidades de negócio que conhecem melhor do que ninguém porque têm informação privilegiada e acesso directo aos decisores. Foi assim que nos grandes partidos PS e PSD e agora também no CDS se passou da militância política para o mundo dos negócios, sempre com base nas agendas telefónicas dos telemóveis e na permuta de favores. As empresas mais sábias recrutam sempre quem telefona para um membro do Governo, deste ou dos anteriores, e é sempre atendido. Como se diz agora é um asset precioso, permite negócios e “traz” negócios.
Em cima as coisas são mais alcatifadas
Nos casos mais em cima, envolvendo o poder central e os grandes negócios, como as privatizações, aí há aspectos diferentes. A intermediação passa pelos serviços dos grandes escritórios de advogados, nacionais e estrangeiros, pelas empresas de consultoria, pela banca, pelos gabinetes e pelos assessores, tudo muito alcatifado e prudente, em almoços de negócios, férias em comum, sem rastro de papel, dentro do “círculo de confiança”, com gente muito competente e de “sucesso”, e acaba nos offshores das Caraíbas. Como é que se pode esperar que haja indignação com a pequena corrupção (e aí até há mais) quando ninguém diz nada sobre o Lux Leaks e o Swiss Leaks, como se fosse normal, desviar por sistema o dinheiro dos impostos nacionais?
Enquanto não se combater o “meio” de onde surgem as “redes” tudo vai continuar na mesma
As “redes” de que falava a procuradora podem ser combatidas no plano político, embora seja cada vez mais difícil fazê-lo pelo fechamento dos grandes partidos, pelas suas cada vez mais poderosas partidocracias. À medida que perdem votos e legitimidade política, acantonam-se nos seus lugares e promovem apenas os semelhantes com provas dadas nos mesmos hábitos e procedimentos. Geram assim a “confiança” que é necessária para subirem no aparelho partidário e isso explica, entre outras coisas, porque não há nos partidos uma intransigência face à corrupção. Podem acumular leis sobre leis, para responder à pressão pública, mas os mecanismos permanecem intactos e são suficientemente maleáveis para se adaptarem a diferentes circunstâncias.
Muita gente que não é especialmente gananciosa nem beneficiou muito do “pote”, permite que à sua volta os amigos e próximos na política o façam, diante dos seus olhos e com a sua complacência. O “meio” cola-se e o “meio” ajusta as suas contas. Quanto às trapalhadas com negócios, impostos, remunerações, contribuições para a segurança social, são apenas um aspecto do funcionamento de um “meio” destinado a ganhar dinheiro por via da posição partidária, sem grandes cuidados com a forma. Hoje seria diferente, haveria um imenso cuidado com a forma, e nunca aconteceriam estes “esquecimentos”.
José Pacheco Pereira
Opinião SÁBADO 06.03.2015