1. Pedro Passos Coelho nunca surpreende. Sempre que existe uma oportunidade para mostrar uma réstea de dignidade pessoal, alguma ténue preocupação com os cidadãos do seu país ou um lampejo de sentido patriótico, Passos Coelho exibe a sua natureza e faz a única coisa que sabe: obedece ao que julga serem os desejos do seu suserano.
Foi assim com a notícia da vitória do Syriza na Grécia, com o anúncio das primeiras posições do Governo grego e foi assim com a proposta grega de uma conferência internacional sobre a dívida. Tudo acontecimentos que qualquer Governo português, independentemente da sua cor política, deveria receber com algum agrado, porque reforçam a nossa posição negocial como credores no seio da União Europeia, mas que Passos Coelho preferiu criticar ecoando os ditames da voz do dono. O Governo grego quer defender a dignidade e a vida dos gregos e Passos Coelho não suporta esse atrevimento. Passos Coelho nem percebe como é que Tsipras não considera uma honra servir os poderosos deste mundo e lamber a sola cardada das suas botas, deleitando-se na volúpia da submissão. Passos Coelho não é mais papista que o Papa: é apenas mais alemão do que Angela Merkel e mais obsceno do que Miguel de Vasconcelos.
2. Tsipras vai ter de voltar atrás, o Syriza vai recuar, Varoufakis tem de engolir uns sapos, a Grécia vai renegar as suas promessas, aquilo era um conto de crianças, a Alemanha vai-lhes partir as costas, as pernas, os braços, os dentes e Portugal vai ajudar com todo o gosto, a Espanha também e a Itália e a França vão ter medo de se meter ao barulho. Uma parte da imprensa nacional e internacional rejubila com a mais pequena intervenção onde um dirigente do Syriza fale sensatamente porque isso significa que estão “a recuar”.
Na realidade, a negociação ainda nem começou de facto e, como é habitual, deverá envolver múltiplos ajustamentos nas posições dos negociadores.
Muitas das vozes interessadas em enfraquecer a posição grega sublinham o facto de os gregos terem deixado de usar a expressão “perdão”, mas isso é irrelevante. A Grécia exige e precisa de renegociar a sua dívida, mas se isso é feito por corte do capital em dívida, por redução dos juros ou por alargamento dos prazos (que pode ser uma transformação de parte da dívida em dívida perpétua) é indiferente. Quanto a dívida perpétua, soubemos nos últimos tempos que a Inglaterra só agora vai pagar dívidas que contraiu no século XVIII e que a Alemanha só em 2010 pagou o que sobrava da sua dívida da I Guerra, havendo ainda hoje contas por acertar – nomeadamente com Portugal.
Em todos os casos, a renegociação da dívida grega, que terá de acontecer se não quisermos aceitar o pior, significará perdas para os credores. Mas a garantia de que irão receber é uma vantagem importante. E a manutenção de alguma concórdia na Europa também.
Como em todas as negociações, nesta é importante que nenhum dos negociadores perca a face e, por isso, é preciso dar algum desconto às declarações das várias partes. A Alemanha precisará de dizer que fez recuar a Grécia e que a obrigou a retirar a exigência de haircut. A Grécia precisa de dizer que conseguiu obrigar a UE a reescalonar pagamentos de acordo com as possibilidades da sua economia. Isto, se tudo correr bem. Mas o que é evidente para quem leia jornais é que há demasiada gente empenhada em que não corra bem e apostada em inquinar a discussão. Gente para quem é importante fazer da Grécia um exemplo para que mais nenhum governo de esquerda seja eleito na Europa, para que mais ninguém se atreva a contestar os credores ou a pôr em causa o poder da Alemanha. Por agora, Merkel tenta apagar um fogo na Ucrânia mas brinca com o fogo na Grécia.
3. Por agora, a posição da Alemanha é de total intransigência. Apesar de saber que a intransigência não permitirá que a Grécia pague a sua dívida mais cedo. Não faz sentido? Faz, se o objectivo for manter a Grécia numa eterna dependência. E, de caminho, todos os outros países devedores, como Portugal. Faz, se o objectivo for transformar a dívida numa renda eterna, de que os alemães irão beneficiar para sempre e que irá escravizar os gregos e os portugueses durante gerações. As invasões das novas guerras já não se fazem com soldados no terreno. Se se quer conquistar um país, é mais fácil escravizá-lo pela dívida.
A Alemanha, último país da Europa a usar mão-de-obra escrava em massa, conhece as vantagens do processo. Muitos dos grandes empórios alemães cresceram assim, sobre o trabalho gratuito de milhões de escravos que, durante a última guerra, chegaram a representar 20% da sua mão-de-obra e cujos sobreviventes só muito recentemente começaram a ser indemnizados com quantias pouco mais que simbólicas. Um empréstimo forçado, sem juros, com longa maturidade, ainda largamente por pagar, que não indigna os comentadores. Milhares de empresas como o Deutsche Bank, a Siemens, a Volkswagen, a Hoechst, a Allianz, a BASF, a Bayer, a BMW cresceram assim. A Alemanha sabe que não o pode voltar a fazer, mas a escravidão da dívida assegura a melhor alternativa.
José Vítor Malheiros