O misericordioso Dr. Lemos e a sua moral de sacristia

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A convicção do presidente da União das Misericórdias, Manuel Lemos, de que “em Portugal só passa fome quem quer” é todo um programa ideológico e toda uma visão da sociedade que devia revoltar e envergonhar qualquer pessoa decente.

Explica o bem-aventurado Dr. Lemos que há quem não coma por ignorância, isto é, porque desconhece a existência das cantinas sociais. Talvez o Dr. Lemos não saiba, ocupado que anda a praticar a sua caridadezinha serôdia e bafienta, dos últimos dados do INE sobre a pobreza em Portugal. Talvez ignore, por exemplo, que a taxa de risco de miséria, já depois de realizadas as transferências sociais, é hoje, feitos alguns contorcionismos estatísticos, de 19,5%. Ou seja, considerando este indicador há 1,95 milhões de pessoas em Portugal em perigo de carência, por disporem de um rendimento inferior ao limiar de pobreza. Mas este universo é ainda maior se eliminarmos os efeitos da quebra de rendimentos. Isto é, as consequências do empobrecimento punitivo, à bruta e conformado à matriz do “custe o que custar” indicam que, além do que as estatísticas oficiais revelam, existem mais 640 mil cidadãos em situação de pobreza.

É pois com facilidade que se conclui a evidência: ao contrário do que diz o sapiente Dr. Lemos, em Portugal não se passa fome por ignorância ou desconhecimento. É mesmo por falta de dinheiro. Por isso, afirmar que “só passa fome quem quer”, além de desonesto é, como afirmou um corajoso dirigente regional da Cáritas, um atentado contra a dignidade das pessoas que, por terem os bolsos vazios, nem sequer uma refeição conseguem fazer todos os dias.

Não faço ideia se haverá confissão ou ato de contrição que valha ao católico Manuel Lemos, depois de exibir tamanha aleivosia. Mas sei que não gosto da moral de sacristia inscrita no seu discurso nem tão pouco de generalizações, quando se trata de dramas sociais.

O presidente da União das Misericórdias faz parte daquele grupo de pessoas que acha que comer bife todos os dias é viver acima das possibilidades, ou que quem lava os dentes com a água a pingar deve ser castigado por desperdício. Ou, quem sabe, daqueles que defendem que o Estado deve fazer tudo para salvar vidas, mas não custe o que custar. O modelo de sociedade que este senhor defende e deseja assenta na caridade e não na solidariedade. Isto é, que um gigantesco exército de carenciados, em vez de dispor dos recursos mínimos para viver com dignidade, circule por aí de mão estendida, na expectativa de sobreviver conseguindo uma carcaça ou uma malga de sopa quente, fornecida pela generosidade misericordiosa do Dr. Lemos.

Para que não sobrem equívocos, as entidades e organizações que compõe o chamado “terceiro setor”, o mesmo é dizer a economia social, prestam um serviço insubstituível à comunidade, sobretudo em tempos de crise. Não tenhamos dúvidas, eu pelo menos não tenho, que as misericórdias, as instituições particulares de solidariedade social e a própria igreja católica constituem uma rede de apoio indispensável que, se não existisse, tornaria ainda mais dramática a nossa realidade.

Mas uma coisa é reconhecer este facto indesmentível, outra bem diferente é subscrever as teses paternalistas de alguns dos seus responsáveis. Sejamos claros, as IPSS beneficiam de qualquer coisa como dois mil milhões de euros, mais coisa menos coisa, em transferências diretas do Orçamento do Estado. Verbas essas conseguidas também à custa do assalto fiscal e dos cortes nos salários, nas pensões de reforma, nos subsídios de desemprego e noutras prestações sociais, como por exemplo o Rendimento Social de Inserção. E foi por conta deste confisco que as desigualdades se agravaram e tanta gente empobreceu muito para além do que admite a dignidade humana. Como já escrevi uma vez, são estas almas que, apesar de abrigados direta ou indiretamente no Estado, passam a vida a rogar-lhe pragas e a abjurá-lo. Queira Deus que o Dr. Lemos nunca precise de recorrer à misericórdia. Se isso acontecer, longe vá o agoiro, talvez alguém lhe responda: agora, aguenta, aguenta.

NUNO SARAIVA
Opinião DN 08.02.2015