A palavra “poupança” tinha até há uns anos boa fama. Era razoável, prudente, sensato “poupar”. As primeiras gerações de portugueses que saíram da pobreza, à custa de um trabalho de uma vida inteira, “poupavam”. No fim da vida, aplicavam essa poupança, quase sempre comprando uma casa modesta, ou pagando parte da sua própria reforma, tendo uma vida mais confortável do que as pensões quase de miséria que vieram a receber já na década de sessenta, em si mesmo uma verdadeira revolução, a da “previdência para os rurais”, a somar à longa conquista do direito à reforma paga.
Alguns caíram no erro de “poupar” tornando-se senhorios, também de muito pequena dimensão, e acabaram na quase miséria. Outros colocaram o dinheiro nas fórmulas mais conservadoras que existiam, rodeadas de todas as garantias possíveis. Certificados de aforro, depósitos a prazo, num banco que já se conhecia bem, onde muitas vezes as relações com o cliente eram pessoais. Com as várias febres da bolsa, houve quem timidamente colocasse algum dinheiro em acções, arrastando consigo amigos e conhecidos. O “gato por lebre” queimou muitos e, a não ser por surtos nalgumas subscrições, o investimento em bolsa nunca foi o modo preferido de colocar “poupanças”. Houve também a D. Branca e alguma agiotagem de pequena dimensão. Mas, com a memória da pobreza ainda fresca, uma geração atrás ou uma juventude atrás, as “poupanças” permaneceram sempre muito conservadoras, e a propriedade foi sempre a mais conservadora das fórmulas.
Depois, a natureza das “poupanças” começou a mudar, à medida que oturnover geracional mudava hábitos, costumes e necessidades. Com uma reforma ou pensão assegurada, com o emprego público garantido, com uma razoável protecção na saúde e com vários mecanismos de Segurança Social, a memória da pobreza foi ficando para trás, para os pais e os avós, e aquilo que o país nunca tinha tido, uma classe média significativa, foi-se criando. Deixou de se poupar como antes, porque já não parecia necessário, e foi-se consumindo mais e muitas vezes melhor.
Uma forma dominante de endividamento substituiu o principal objectivo da poupança antiga, a compra de casa própria. Milhares de portugueses tomaram a decisão, absolutamente racional, de pedir dinheiro ao banco para comprar casa. Tinham salários que lhes permitiam pagar as prestações e os juros eram bonificados e baixos. O que é que se esperava, que num país que não tinha mercado de arrendamento, alguém fizesse de outra maneira? E este foi o principal factor de endividamento das famílias.
Claro que houve endividamento excessivo e desperdício, mas estes são excepções. A maioria dessa classe média começou a poupar menos e gastar mais, a consumir mais, o que também é absolutamente normal e vantajoso para a economia. O resultado foi uma pequena revolução na vida de muitos portugueses que nunca tinham tido acesso a um vasto número de bens de consumo, e a bens de consumo simbólicos e imateriais, educação, consumos culturais, media, férias, viagens. À sua volta, as cidades mudaram, novas formas de comércio surgiram, produtos até então reservados aos mais ricos democratizaram-se. A publicidade e o marketing ganharam uma dimensão fundamental, perante consumidores que, pela primeira vez, podiam escolher sem ser apenas pelo preço. No topo dessa classe média, já não se bebia, escolhia-se o vinho pelas marcas, regiões, uvas, e, na parte de baixo, acedia-se a DVD, melhores televisores, podia sonhar-se em passar umas férias baratas no Algarve ou em dar aos filhos as sapatilhas que ele queria, mesmo que fosse uma marca de contrafacção. Um número significativo de mulheres deixaram de ser “domésticas”, ou “donas de casa”. As mulheres, empregadas no Estado ou assalariadas em várias indústrias de mão-de-obra intensiva, tinham salários próprios e iam mais vezes ao cabeleireiro, e as mais novas tentavam seguir as modas que, das telenovelas às revistas do coração, forneciam novos padrões. Como há setenta anos se tinha generalizado o relógio masculino, agora toda a gente tinha telemóvel, alguns “leitores” portáteis e máquinas fotográficas e de vídeo.
Podia continuar aqui a descrever a saída de milhões de portugueses dos não-consumos da pobreza, da obsessão com a poupança defensiva, ao domínio do consumo de massas, uma história de progressiva melhoria da qualidade e das condições de vida das pessoas. Sim, tinham mais dinheiro e podiam gastar mais, gastaram-no consigo próprios, com a sua família, com os seus pais e filhos, e isso tornou-os mais senhores da sua vida e menos escravos da necessidade. Tornou-os mais cosmopolitas e mais cultos, mas, acima de tudo, mais felizes. É isto que se chama melhorismo social, é este o objectivo da política em democracia: fazer com que os homens e as mulheres que estão vivos, tenham um dia ou cem anos, usufruam da liberdade que lhes traz poderem escolher viver a sua própria vida. A política em democracia não é neo-malthusiana e não se põe a prever um futuro, que nunca é o que prevíamos. Vive no presente e para o presente, e só assim tem futuro.
A esquerda nunca compreendeu este processo, pensando que o consumismo era uma nova prisão e que os consumidores, por o serem, ficavam menos cidadãos. Criticavam as sociedades ocidentais, onde se vivia com uma liberdade pessoal inimaginável no passado, pelos malefícios da publicidade e pelas distracções das novas culturas urbanas. Presos nas categorias rígidas do conflito social, não perceberam que fazer estas críticas em Portugal, onde a maioria dos seus concidadãos estava a aceder pela primeira vez a bens de consumo libertadores (em particular das mulheres, como o aspirador ou a máquina de lavar), acabaram por prestar um péssimo serviço ao abrir caminho para o desprezo e punição moral que à direita se veio fazer do “viver acima das suas posses”, ou seja, o desprezo pela classe média que queriam ter como alvo e proletarizar de novo.
Voltemos, pois, às “poupanças”. Vimos como serviram de mecanismo de transição da pobreza, e como abriram caminho para uma classe média que podia viver uma vida decente sem a obsessão de poupar, mas mesmo assim deixando mais aos seus filhos, nem que seja pela educação e qualificação. Claro que vale sempre a pena prevenirmos, como dizem os anglo-saxónicos, para um rainy day e continua a haver valor social em se poupar parte do que se ganha. Mas o que tornou a palavra “poupanças” numa palavra maldita é ela hoje servir para esconder hipocritamente actos que nada têm de “poupança” e, a prazo, significam mais despesa.
Quando se ouve um governante dizer que se estão a fazer “poupanças” neste ou naquele ministério, a palavra devia ser imediatamente substituída por “cortes”. É o primeiro combate a travar contra o doublespeak orwelliano de que o poder tanto gosta. Depois vai-se ver os cortes e começam sempre pelos despedimentos, e depois por cortes em despesas fundamentais para os serviços públicos funcionarem com qualidade mínima. Há alguns cortes bem feitos e necessários? Com certeza que haverá, mas são excepções. Quando se chama “poupanças” aos cortes, já há gato escondido… com o rabo de fora.
As “poupanças” estão hoje a colocar, nessa outra mistificação orwelliana que é a “requalificação”, centenas de trabalhadores da Segurança Social na rua. As “poupanças” colocaram milhares de professores no desemprego, mesmo nos casos em que é vital haver mais professores, como nos alunos com necessidades especiais. As “poupanças” significam que muitas escolas do Interior e do Norte não são aquecidas como deviam. As “poupanças” criaram uma situação de urgências nos hospitais, particularmente aguda no Inverno e com um surto de gripe, cortando nos médicos disponíveis, deixando doentes em situação de alto risco muitas horas à espera.
São estas “poupanças” poupanças sem aspas? Não são. Todas implicam custos acrescidos, mesmo nalguns casos a curto prazo. Não é possível no Estado embaratecer todos os serviços, sem encarecer tudo a montante, até porque o custo social das disfunções em serviços vitais é pago por todos. Basta haver alguns processos em tribunal em que se prove negligência do Serviço Nacional de Saúde para que tudo o que se “poupou” num hospital ir numa indemnização, já para não falar do valor de cada vida.
É outro dos preços que os portugueses estão a pagar indevidamente pela concentração das “poupanças” nos serviços públicos essenciais, por incapacidade ou falta de vontade em ir “poupar” para outras bandas mais abonadas. A degradação do Estado, que já estava longe de ser perfeito antes, é outra das heranças malditas dos dias de hoje. E como é muito mais fácil estragar do que compor, imaginem o que estas “poupanças” nos vão custar.
José Pacheco Pereira