Corrupção foi considerada a palavra do ano de 2014 em Portugal. Era bom que democracia fosse a palavra de 2015
Há a ideia de que as palavras se opõem aos actos; que as acções transformam a realidade e que as conversas adiam essa transformação. Nada mais errado. As palavras criam as fronteiras da nossa forma de pensar. Quando as palavras mudam, também mudam os horizontes. Um país de “empreendedores”, uma espécie de vendedores ambulantes sem direitos, é um sítio de escravos. Um país que transforma a compensação do trabalho em “direitos adquiridos”, supostos privilégios corporativos, é um local onde mandam os especuladores e pagam os cidadãos.
As palavras, ao contrário do que se pensa, não estão gravadas na pedra. O seu significado e avaliação muda ao longo do tempo. Esse significado é um campo de batalha nunca encerrado.
Estudos políticos demonstram que nos anos 70, em França e em Portugal, a palavra “nacionalização” tinha um valor social positivo. Quando, pela primeira vez, François Mitterrand ganhou a presidência francesa, já no início dos anos 80, a palavra já causava pânico nas chamadas classes médias. Conta a revista “Nouvel Observateur” que, logo depois da vitória do candidato socialista, houve uma senhora que acorreu ao banco para levantar o seu dinheiro. Muito afogueada, repetia “Este banco vai ser nacionalizado, este banco vai ser nacionalizado”, ao que o caixa retorquiu: “Minha senhora, este banco foi nacionalizado [pelo general De Gaulle] há 30 anos.”
A forma como as pessoas entendem as palavras demonstra o seu posicionamento político e ideológico. Desse ponto de vista, é muito interessante que a palavra do ano de 2011 da Porto Editora, votada online, tenha sido “austeridade”; a de 2012 foi “entroikado”; e em 2014 venceu “corrupção”. Elas espelham bem a mudança das condições de vida dos portugueses.
Mas estão enganados aqueles que pensam que são apenas as condições de vida que geram as respostas: se é verdade que a humanidade, regra geral, não responde a problemas que não se lhe colocam, é também verdade que condições sociais semelhantes podem não ter a mesma resposta. A vida e a história da humanidade estão sujeitas a escolhas e são produzidas pelos próprios. Por isso, embora seja de admirar, é perfeitamente possível que países que vivem situações sociais com traços idênticos, como a Grécia, Espanha, Irlanda e Portugal, tenham situações políticas muito diversas.
É interessante perceber qual a razão que faz com que em todos esses países, menos em Portugal, os partidos que governaram durante décadas estejam em crise, e aqui vamos continuar alegremente o rotativismo do centrão.
Segundo o professor de Ciência Política Ignacio Sánchez-Cuenca, “há uma dimensão especificamente europeia da crise da política. Um dos problemas principais, se não o principal, é que a pertença à zona euro estreita muitíssimo a margem de manobra dos governos, a qual não pode senão gerar uma enorme frustração na cidadania. Na minha opinião. a impotência dos governos na área do euro é uma das causas de descrédito da política nestes tempos”. E, estranhamente, isso também se aplica às respostas políticas à crise: em Portugal, à impotência política dos governos do bloco central, somou-se a impotência política das forças que se lhe opõem. Não basta uma situação social para gerar uma resposta, é necessário um discurso e construir um sentido de acção comum.
Estamos mais de 90% dos portugueses de acordo que é preciso acabar com a corrupção, que é preciso discutir e tornar justas as medidas económicas, e que é fundamental tirar o poder das mãos de uns poucos para criar uma democracia de todos. Infelizmente, a esse consenso social não corresponde a uma força política que o traduza. Não se conseguiu transformar consenso social em prática. Ainda não criámos as palavras necessárias.
Nuno Ramos de Almeida
Opinião jornal i 07.01.2015