Quando, há cerca de dez meses, publiquei uma carta aberta aos deputados sobre a “convergência das pensões”, aprovada pelo Governo em Setembro de 2013, houve quem entendesse que a carta continha termos violentos. Fiquei sempre com a ideia de que os termos utilizados eram os adequados, mas não deixei de ficar com alguma sensação de desconforto, por pensar que essa crítica que me era feita poderia ser adequada.
Na altura, entre outras coisas, reclamava, contra a tentativa de cortar (e não fazer convergir, como se fez crer) as pensões dos aposentados do sector público com os do privado, cortando abruptamente as pensões já em pagamento, sem qualquer preocupação em garantir uma transição gradual, estendendo esse corte a valores de pensão demasiadamente baixos. Curiosamente, com essa legislação, as mais altas não sofriam um corte maior do que aquele a que já estavam sujeitas, o que me deu o distanciamento necessário para criticar livremente. Sabe-se o que aconteceu depois com essa mesma legislação.
É fácil, hoje, constatar que as minhas considerações não só não eram demasiado violentas, como pecavam por defeito.
O Governo e os deputados da nação aprovaram um orçamento rectificativo para 2014, no qual se proíbe que aposentados (da CGA e da Segurança Social) exerçam funções públicas a qualquer título, isto é, remuneradas ou gratuitas. Estão ressalvadas excepções e dá-se a hipótese de qualquer um desses aposentados poder exercer essas funções com autorização (!) do(s) membro(s) do governo responsável(eis) pela administração pública e/ou finanças, desde que estes reconheçam o interesse público na colaboração (sem que se explique o que isso é, no caso vertente). Para ser concreto, dou um exemplo, de entre muitos possíveis: um empresário de sucesso, aposentado, não pode, segundo a versão da legislação agora em vigor, aceitar o convite de uma universidade para ser membro externo do seu conselho geral, lugar exercido a título gratuito, partilhando a sua experiência. Repare-se que pode ser convidado… mas não pode aceitar, a não ser que um ministro ou secretário de Estado, de competência técnica duvidosa, o autorize. É claro que, se convidado, o empresário diz que não aceita, porque não admite que a sua vida seja condicionada e atente contra o seu direito de trabalhar, ficando sujeito a autorização de um qualquer membro de qualquer governo.
Podemos olhar esta aberração legislativa de dois ângulos: o jurídico e o político.
Quanto ao jurídico, não vou pronunciar-me em detalhe, pois, na devida altura, fiz uma queixa à Provedoria de Justiça, que abriu um processo, sendo de boa educação esperar pela sua tomada de posição.
Não deixo, porém, de notar a aparente desconformidade da “proibição” com vários direitos consagrados constitucionalmente, incluindo a sua limitação, sem qualquer justificação legal. Restringe-se o usufruto de um direito “porque sim” (ou talvez não, como se verá adiante).
Já do ponto de vista político as questões são de livre interpretação. Bagão Félix, na SIC, chamou-lhe “eutanásia social” (dos mais idosos, já se vê), confirmando-se deste modo a “aversão” que o primeiro-ministro tem aos mais velhos (como se ele fosse novo para sempre). Pedro Marques Lopes, no DN de dia 20 de Julho, põe duas hipóteses, uma das quais é tratar-se de uma cretinice colectiva (de quem aprovou e de quem deixou passar, sem uma nota de reprovação).
Qualquer das interpretações corresponde aos factos conhecidos. Além disso, justificam a minha “violência” de há dez meses: “Já não é só incompetência – é estupidez, teimosia, miopia ou má-fé.” Só me enganei na miopia. “Esta gente” (e estou a usar os termos que o primeiro-ministro usa quando se refere a alguém que faz o que ele não gosta) pode ter muitas deficiências, mas não é míope, “vê” muito bem aquilo que faz.
Parece pertinente perguntar a que propósito surge, num orçamento rectificativo, uma alteração ao estatuto da aposentação que não tem qualquer, sublinho a palavra qualquer, consequência orçamental? Mesmo admitindo a racionalidade de tal alteração, seria pertinente perguntar por que razão não foi logo introduzida aquando da apresentação do Orçamento, em Outubro de 2013? O que é que aconteceu, entretanto, para obrigar a tamanho disparate? Não tendo sido uma consequência do chumbo do Tribunal Constitucional, por que razão é importante para o Orçamento do Estado um aposentado trabalhar gratuitamente, desde que não retire empregos a outros? A resposta a todas estas perguntas pode ser uma das que foram já apresentadas, ou ambas, e que referi acima, mas tal não é suficiente para explicar a súbita aparição no orçamento rectificativo de uma proibição patética.
Vejamos então mais uma hipótese. A proposta de lei sobre a “convergência” das pensões foi aprovada, em Conselho de Ministros, em 12 de Setembro de 2013. Nessa mesma altura, estava a ser elaborada a proposta de Orçamento do Estado para 2014, para ser entregue na AR a 15 de Outubro, o que veio a acontecer. As primeiras grandes ondas de choque, resultantes da aprovação da proposta de lei sobre a “convergência”, começaram a ter maior impacto a partir de meados de Outubro de 2013, com vários aposentados a manifestarem a sua indignação pela falta de sensibilidade social do Governo. Tal foi objecto de debates e notícias nos jornais, nas estações de rádio e nos canais televisivos. Em suma, o Governo só sentiu o incómodo provocado pelos aposentados após a entrega da proposta de Orçamento para 2014. Era tarde para fazer alguma coisa e tentar calá-los, aquando da discussão do Orçamento na AR, ia levantar uma polémica que lhe era prejudicial.
Mas era preciso dar menos “plateia” àqueles agitadores, em especial aos que têm audiências. E esses são, na sua maioria, os que ocupam lugares em órgãos públicos, remunerados, ou não.
Mas há aqueles que até convém que falem, pois ou são apoiantes das políticas em curso, ou militantes de certos partidos à espera de protagonismo ou de “tacho”, ou simplesmente são acríticos em matérias de interesse público e, portanto, o que dizem é inofensivo. Para isso, nada melhor do que pôr um ministro ou um secretário de Estado do Ministério das Finanças a reconhecer o interesse público do exercício dessas funções, ainda que para o fazer seja tecnicamente incompetente, o que já não importa. E também nada melhor do que fazer passar a legislação correspondente no meio de disposições mais importantes, para passar despercebida.
O método actual de calar os adversários é mais sofisticado do que o usado pelos ditadores, mas o objectivo é o mesmo. A sanha do primeiro-ministro contra reformados traduz-se, assim, numa eutanásia social e num atentado à democracia, neste último caso, através da tentativa de os calar por meios, supostamente, legais. A cretinice vem depois e nenhum dos intervenientes no processo legislativo é inocente, nem que seja por negligência ou omissão.
Só que o primeiro-ministro esqueceu-se, mais uma vez, que estamos num Estado de direito, ainda que isso visivelmente o incomode. Não é admissível que um cidadão seja proibido de trabalhar, ainda mais quando o faz a título gratuito, desde que o usufruto desse direito não retire direitos a outros. Ora, no caso vertente, isso não acontece, isto é, não são afectados direitos de terceiros. E, se acontecesse, há maneiras, desde que se seja competente, de legislar sem que se atinja a dignidade dos cidadãos e sem ferir a Constituição. O Estado, como patrão, tem o direito de escolher, de modo transparente e justo, quem quer que trabalhe para ele. Mas é preciso que quem legisle tenha coragem de assumir os disparates e tenha a inteligência de evitar inconstitucionalidades. Escolheram a via da estupidez, da má-fé (não é seguro, mas parece) e da cobardia. Não me auto-intitulo professor de Direito, como certas pessoas, pois para isso não tenho formação. Mas garanto que conseguiria elaborar legislação que levaria ao mesmo objectivo final. Não me ofereço para explicar porque não concordo com esse objectivo e… não posso trabalhar, nem admito pedir autorização a quem quer que seja.
Oh gente! Nem para tramar os adversários são competentes! Pobre país!
Professor catedrático aposentado