Texto muito importante para nós, este artigo de Luís Valadares Tavares. Para mim, um contributo valente, pelas informações que retive. A quem queira andar informado, recomendo a sua leitura. Muito bem elaborado, tem a vantagem de apresentar factos (com números e contas) – e de responder às alegações do Governo de forma objectiva e consistente. A virtude de quem sabe do que fala. Além das evidências, demonstra e conclui. E, como se isso fosse pouco, responde de forma pertinente, aqui tornada óbvia, à questão de haver ou não alternativas – ele mesmo as propondo, de forma fundamentada.
A abrir o apetite, deixo a conclusão:
«Esta sucessão de cortes só será evitada se a actual proposta for considerada inconstitucional.
Todavia, a apreciação da eventual inconstitucionalidade cabe exclusivamente ao Tribunal Constitucional, pelo que o autor entende que não deve manifestar qualquer opinião sobre tal matéria.»
Aida Santos
“Cortar nas reformas é a solução para evitar novo resgate?”
LUÍS VALADARES TAVARES
(“Público”, 29/09/2013)
«1. Periodicamente, o Governo tem procurado criar a imagem de que uma das principais causas do défice público é o encargo com as pensões de aposentações e reformas, pelo que entende justificar-se propor de novo a sua redução, agora aplicando uma penalidade de cerca de 10% aos actuais pensionistas públicos. Recentemente, o novo corte nas pensões foi mesmo indicado como a chave milagrosa para evitar novo resgate. Ora, os próprios dados do Ministério das Finanças (MF) demonstram o contrário, tal como se evidencia seguidamente.
2. No Quadro A* apresentam-se as receitas devidas às contribuições dos trabalhadores públicos e privados para o seu sistema de aposentação e reforma, bem como os encargos com as pensões de aposentações e reformas expressos a preços constantes de 2012 (dados do MF). Este quadro mostra que o encargo com reformas e aposentações tem sido sempre inferior às correspondentes receitas, salvo nos últimos três anos.
3. Para este recente défice contribui a promoção de reformas antecipadas na função pública, a qual reduziu drasticamente o número de funcionários públicos e o encargo com os salários mas transferiu para a Caixa Geral de Aposentações a correspondente despesa. Com efeito, apresenta-se no Quadro B* a redução do encargo com salários da função pública desde 2002, também a preços constantes de 2012, pelo que subtraída a componente induzida pela antecipação, o défice líquido é de cerca de 1000 milhões de euros. Consequentemente, o peso de todas as pensões públicas e privadas é, sem as antecipações, de apenas 0,6% do PIB e, não descontando as antecipações, é de cerca de 1,3% do PIB, ou seja, 5% das receitas públicas (sem contribuições sociais). Apesar de os encargos com a função pública serem inferiores à média europeia, atendendo a que se vão acentuar as aposentações antecipadas, o referido défice vai ser citado anualmente como fundamento para novos cortes às pensões.
4. Importa agora compreender que o Governo pode melhor gerir estes 95%, cerca de 46.500 milhões de euros, designadamente melhorando a gestão dos contratos públicos de obras, aquisições de bens e serviços. Na verdade, os encargos com estes contratos ascendem a cerca de 16% do PIB, segundo estimativas do autor confirmadas pela Comissão Europeia e pela OCDE, ou seja, cerca de 26.000 milhões de euros. Ora, o actual Governo não generalizou a contratação electrónica aos contratos por ajuste directo, evitando que se gerem as poupanças inerentes à substituição da opacidade do papel pela acessibilidade da Internet, as quais são próximas de 15%. Se não tivesse recusado tal proposta, obtinha poupanças superiores a 2400 milhões de euros, bem superior à poupança do possível corte e semelhante ao chamado défice das pensões.
5. A fim de melhor compreender o défice de atenção política do Governo às despesas com os contratos públicos, convém recordar que, em 2012, o ano de todos os sacrifícios, o acréscimo de despesa com aquisições de bens e serviços dos Institutos Públicos (Serviços e Fundos Autónomos) ultrapassa os 1100 milhões de euros! Valor que já apresentei em artigo anterior, publicado neste jornal e sobre o qual fui esclarecido por fontes do PSD tratar-se de dívidas da Saúde, deixadas pelo Governo anterior. Mas se assim for, em 2013, recomendo que o Governo não pague pela segunda vez as mesmas dívidas, pelo que então esta rubrica poderá regressar pelo menos ao nível de 2011, e eis que volta a surgir uma disponibilidade de 1100 milhões de euros, superior à poupança do corte nas pensões!
6. Em síntese, e na sequência do frequente pedido do Governo para apresentação de propostas alternativas, os dados anteriores justificam que se proponha que o Governo compreenda que os actuais agregados de despesa pública anual mal controlados, e que importa reduzir, estão relacionados com a contratação pública e não com salários ou pensões. A sua melhoria implica a generalização da contratação electrónica aos contratos de menor valor.
7. No que respeita ao exame da eventual inconstitucionalidade sobre os cortes propostos, creio ter apresentado evidências apenas baseadas nos dados do MF e que permitem concluir:
a) O encargo liquido das pensões para o OE, mesmo sem descontar o efeito das antecipações, é de apenas 5% das receitas públicas (sem contribuições sociais);
b) Existem importantes rubricas orçamentais potenciais geradoras de poupanças e que o Governo recusar racionalizar;
c) Consequentemente, não tem fundamento substantivo invocar o argumento das “condições excepcionais de necessidade” para se evitar o eventual juízo de inconstitucionalidade;
d) Por motivos óbvios, ainda menos fundamentável é o argumento do 2.º resgate, pois será preferível dar atenção à gestão dos restantes 95% das receitas públicas;
e) Como é evidente, nos próximos anos o défice das pensões será acrescido pelo montante resultante da redução dos salários públicos por reformas/aposentações antecipadas e como o Governo não efectua a soma algébrica entre salários e pensões, será previsível a sucessiva proposta de novos cortes sempre com o mesmo argumento. Esta sucessão de cortes só será evitada se a actual proposta for considerada inconstitucional.
8. Todavia, a apreciação da eventual inconstitucionalidade cabe exclusivamente ao Tribunal Constitucional, pelo que o autor entende que não deve manifestar qualquer opinião sobre tal matéria. »
[Professor catedrático emérito do IST, ex-presidente do INA, presidente da APMEP]
[*Nota: não estão aqui os quadros da edição impressa (Quadro A; Quadro B ), para cujos dados o texto aponta.]