Confesso … e Pergunto

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“EU, MÉDICO REFORMADO PÚBLICO, ME CONFESSO… E PERGUNTO…”

No jornal “Público” de hoje, um texto de um associado da “APRe!” (e nosso companheiro, no núcleo do Porto):

“Eu médico reformado público me “confesso”… e pergunto”

FERNANDO CARDOSO RODRIGUES
20/09/2013

«Será sempre uma petulância, uma história pessoal contada pelo próprio. Aproximar-se-á porventura do vitupério que é o elogio em boca própria. De qualquer modo, corro o risco (até porque isto é uma narrativa factual e não um juízo de valor) e, mesmo sabendo que não se pode extrapolar do particular para o geral, também sei que uma singularidade impressiva muitas vezes corporiza bem melhor “o ambiente que se vive e cheira” do que um grande texto retórico que se dilui no meio de tanto “saber”. Dito de outro modo: uma “imagem em texto” vale mais que mil palavras.

Vem isto a propósito do que se está a passar com o serviço público e a classe média ou, melhor, do que lhe estão a fazer para com eles acabar, como tão bem o retratou o Bartoon no PÚBLICO ao equiparar a última às espécies em vias de extinção… Mas não só, também daquilo que vejo como um modo de formatar o país e o mundo, não acreditando naqueles (e são tantos) que seguiram um percurso de vida com objectivos não hiperbólicos, nem no campo financeiro nem no social, antes tentando viver bem no seu tempo, sem procura de distinções espúrias e (por que não dizê-lo?) trabalhando e opinando livremente em serviço público. Poderão vir os que, para lançar poeira na discussão, dirão que não há definição para “classe média” e “serviço público”, mas a esses direi, com José Vítor Malheiros, que também não a há para “corrupção” mas, se lhe retirarmos a definição técnica, ela aí está pululante sob outros nomes e até… sem nome algum.

Mas vamos à história. Necessariamente quase sinóptica, como convém. Licenciei-me em Medicina num curso longo de sete anos (seis escolares e um de estágio final) após o que prestei serviço militar em Moçambique onde, graças ao 25 de Abril, “só” estive catorze meses, já com duas filhas e um rapaz a caminho. Regressado da colónia, optei pela especialidade de Pediatria que terminei após um internato de cinco anos, durante o qual nunca pratiquei medicina privada, por uma questão de coerência, dado estar em formação específica. Terminada a especialidade no ano de 1979 com um exame final, obtive o mesmo grau pela Ordem dos Médicos em novo exame em tudo similar e, após alguns meses como médico eventual no hospital central agregado à faculdade onde me licenciei (com um concurso documental para os hospitais distritais e um estágio pediátrico de dois meses em França, entretanto)), fiz novo exame para outro hospital central, que me deu entrada no quadro. Iniciado aí o meu trabalho, interrompi-o ao fim de um ano para, com uma bolsa de estudo da Fundação Humboldt, ir, durante cerca de um ano e meio, fazer uma graduação em Gastroenterologia Pediátrica na então Alemanha Federal. Devido à sua própria natureza técnica, aquela só pode ser praticada em meio hospitalar, e daí, após mais um tempo no meu hospital de quadro, regressei (após novo exame…) ao hospital central universitário de origem, onde me mantive catorze anos a fazer clínica e técnicas gastroenterológicas numa unidade do Serviço de Pediatria. Durante este período progredi na carreira hospitalar para assistente graduado e chefe de serviço, sucessivamente (mais dois exames…) e, por convite, fui transferido para o hospital onde comecei a carreira no quadro permanente, com o cargo de director de serviço. Aí trabalhei até me reformar, excepto por um período de três anos em que me transferi para outro hospital público (este de estatuto empresarial), onde mantive o cargo mas de onde, a meu pedido, saí porque aí era o princípio da “derrocada” que está agora em execução no Serviço Nacional de Saúde.

Contados os factos, acrescento mais alguns dados enquadrantes. Todos os exames que referi foram, alguns deles com provas práticas, perante júris de cinco elementos qualificados. Os muitos anos de direcção foram exercidos em regime de dedicação exclusiva, por decisão própria, devido à minha maneira de pensar a forma de dirigir. A taxa de mortalidade infantil de meados dos anos setenta/ início de oitenta (em algumas zonas do país) era de “trinta e e tal por mil” enquanto é agora (no país) de “três vírgula quatro” (ou menos) e a nona melhor do mundo. A Pediatria é hoje uma especialidade multifacetada e de alto nível. As carreiras médicas altamente prestigiadas numa hierarquia consentida estão hoje “terminadas”, com a inevitável perda de qualidade a prazo. Fiz urgência de 16 horas até à véspera de me reformar e ganho em termos líquidos e no momento em que escrevo 2.763,14 euros mensais, que inclui 1/12 do subsídio de férias e onde, soube-o hoje, se vai manter a CES mais um corte estrutural retroactivo de 10%. Fora alguma poupança que fui fazendo em família, não tenho mais fontes de rendimento, nem acções bolsistas nem propriedades imobiliárias. Possuo um T3+1 e um automóvel. E é tudo. Ou melhor, tive uma vida cheia e de que me orgulho…

Perguntas: de que querem acusar-me e a tantos outros como eu? Roubei alguém ou fui um “execrável funcionário público” como nos apodam? Não fiz serviço público de qualidade? Não sou classe média estruturante? Capitalizei à outrance numa desfaçatez sem limites? O contrato que fiz com o Estado não foi leal (da minha parte foi!)? Vão devolver-me a idade que tive há mais de 35 anos? O que querem os “senhores”?…

Sejam honestos por uma vez e refiram o que lhes vai na mente!

P.S.: Sei bem que posso passar por me esquecer de quem ganha muito menos que eu (e são tantos), mas acho que o meu depoimento tem um objectivo que é muito claro e os factos que descrevi falam por si acerca do que julgo ser coerência social. Daí o meu orgulho, que é o de tantos, no que fui, enquanto profissional e cidadão, para com o meu/nosso Portugal.»

Cidadão português e europeu, médico pediatra e reformado da função pública, associado da APRe