Na Luta, sempre
Mãe,
Quase sessenta anos atrás quando mudei da escola privada para a escola pública e era a única menina que ia calçada, comecei a perceber que o mundo não era aquele mundo tranquilo e seguro que conhecia. O bem estar, as brincadeiras, o conforto, subitamente, deixaram de ser única realidade que eu conhecia. Entrava noutro mundo, Mãe, e lembro-me de o ter começado a captar através de pequenos sinais que me ia passando. Vieram as leituras, aos poucos a realidade foi ganhando outros contornos, a intranquilidade anichou-se dentro de mim e foi a Mãe que me foi encaminhando. Uma passagem como professora na província, caldeou o turbilhão. Mas a Mãe estava ali para as perguntas inadiáveis.
Foi consigo que aprendi a respeitar a democracia e a política. Foi consigo que, em longos serões familiares, comecei a perceber que havia outra vida para além do dia-a-dia rotineiro, fosse ele de aulas ou de trabalho. Foi consigo que aprendi a detestar a polícia, depois de ter experimentado as cargas bestiais da guarda republicana a cavalo ou dos avanços do carro de água azul-metileno. Tudo ali, na magnífica praça do Rossio. Foi no Rossio que cantei pela primeira vez a Portuguesa emocionada. Na rua, com os outros portugueses que naqueles 1º de Maio se manifestavam contra o regime fascista. Foi consigo que aprendi a estimar os antifascistas, a colaborar na intervenção antifascista, a distinguir os oportunistas e os cobardes, os que por uma mão cheia de nada preferiam calar. Foi com o seu apoio que me empenhei nas lutas académicas. No fim do dia, a casa era o refúgio, sim mas também o local donde saia na manhã seguinte mais convicta e segura. Foi sempre consigo, Mãe e por isso a saudade que tenho das longas conversas que tínhamos ou dos pequenos gestos que trocávamos, sempre numa enorme cumplicidade, é indizível.
Hoje, a Mãe teria 96 anos e apoiar-me-ia, não tenho a menor dúvida. Ficaria contente e orgulhosa por saber que participo com outros portugueses nesta luta que não pode ter quartel contra um governo indigno que parece procurar vingança e nos humilha. Mais do que ficar contente, a Mãe estaria a incentivar-me, sempre a encontrar a palavra certa para não me deixar esmorecer.
Para trás, eu sei como foi, reconheço claramente o percurso até ao dia de hoje. Tento olhar para o futuro, Mãe, só vejo nuvens, tudo cinzento, escuro pouco promissor. Para mim? Não, Mãe, para mim já não importa tanto mas para a Ana ou para o João, para os outros como eles que querem viver e não podem. Não está por perto para trocarmos ideias, Mãe, mas eu sei que tenho de continuar. Não será tanto por mim mas por eles; por aquilo que eu puder ajudar a resolver mas, acima de tudo, para lhes dar um exemplo. A nossa luta também é a deles e se nós ajudámos a construir a democracia porque acreditámos na beleza que a democracia é, então, vale a pena continuar a lutar para que eles segurem a tocha e prossigam. Assim se faz o processo histórico. Não há quês; tudo é esgadanhado e não posso, Mãe, não devo, ficar à espera que as coisas se resolvam por si. Primeiro porque não se resolvem, segundo porque ao não se resolverem, regridem. E um retrocesso é sempre contra natura.
Quando me empenho nesta luta, sinto-me acompanhada e sinto que sou um elo numa longa cadeia civilizacional, que faço o que me compete. Tal qual me ensinou, Mãe.
Maria Luísa Cabral