Homem enfurecido abre a boca e fecha os olhos
Semana após semana, mês após mês, ano após ano, primeiro numa estação televisiva a título de convidado em permanência do inefável Mário Crespo (quer no Jornal das Nove, quer no Plano Inclinado, por onde o encrespado “jornalista” parece ter escorregado de vez por intervenção de alguma divindade benfazeja), depois numa outra estação, Medina Carreira, confirmando a máxima de Catão, o Censor, é o exemplo acabado de que “um homem enfurecido abre a boca e fecha os olhos”, o que não deixa de ser paradoxal se se tiver em conta o nome do programa.
Para gáudio do zé povo, encarniça-se contra todos e quaisquer governantes, o que explica a legião de dezenas de milhares de fãs que sorvem sofregamente o veneno que vai destilando, numa arenga interminável, entregando-se a paroxismos de fúria e desdém. Nos seus melhores dias não hesita perante o insulto. E a populaça rejubila. “Medina Carreira a 1º ministro!” reza uma página do Facebook.
Diga-se em abono da verdade que, no que respeita a convidados, MC não discrimina. Basta-lhe que possam ser utilizados na sua cruzada contra “esta rapaziada”. Por ali passa de tudo, desde o mais probo ao mais repugnante. Sensatez e insensatez são ambas filtradas pela hermenêutica do rancor e do ressentimento. É esta a chave do seu êxito: ter adoptado uma versão “erudita” da linguagem radical das redes sociais, enriquecida pela opinião técnica (por vezes credível) e ilustrada por gráficos a condizer.
Para nós, pobres desgovernados que somos, as diatribes do demagogo enfurecido soam como música aos nossos ouvidos. Dir-se-ia que somos incapazes de aprender com erros passados. Incapazes de quebrar o fascínio que sobre nós exerce o canto das sereias, sempre prontos a atirarmo-nos contra os rochedos e a afundarmo-nos na vã esperança de ilusória felicidade. Mas depressa o sedutor muda de direcção e se converte em profeta catastrofista, e passamos a ser nós o objecto das suas invectivas. Do ilusionista, esperávamos que tirasse da cartola um coelho bem esfolado, mas a cartola revela-se uma nova caixa de Pandora que, uma vez aberta, faz recair sobre nós todas as desgraças. Julgávamo-nos a salvo e somos entregues às Fúrias. Semana após semana, mês após mês, o feiticeiro lança sobre nós o mau olhado. E somos sempre nós, o zé povo que o idolatra, que, no fim do espectáculo, acabamos escaldados e esfolados.
Na última 2ª feira, com continuação prometida para a próxima semana, os reformados estão na berlinda. E, como dizia o outro, “não havia necessidade”. Não só porque MC não deixa passar semana em que não nos mimoseie, em cenários de horror, com a promessa de um destino apocalíptico, mas também porque nos últimos tempos temos estado permanentemente na mira da odiada “rapaziada” que nos desgoverna. Esquecem-se rancores e ressentimentos e os inimigos viscerais unem-se em “santa aliança” contra os reformados, principais arguidos no processo de bancarrota do país.
Uma ex-governante vem desta feita ajudar à festa e traz consigo dados, números e estatísticas quase tão impressionantes como o seu currículo e pedigree: Maria Margarida de Lucena de Castelo Branco Corrêa de Aguiar, enxotada da sua secretaria de estado pelo respectivo ministro, Bagão Félix (caso para dizer, com o nosso Bernardim Ribeiro, que “qual fora então a causa… já então era o que agora havia de ser”). Gráfico após gráfico, empalidece a nossa Constituição, a tal que “não serve para nada [porque] não paga despesa nenhuma”, e empalidecemos nós que nos julgávamos protegidos por esta última. A estatística reina sobre a lei e a política. Para estas criaturas, não somos cidadãos no pleno gozo dos direitos constitucionalmente garantidos: somos parcelas da despesa, uma peste grisalha (para usar a elegante metáfora do deputado Peixoto) que dizima a riqueza nacional, euro a euro.
Tudo isto se passa entre sorrisos e graçolas, dichotes e gracinhas, em alegre e descontraído “tête-à-tête” com D. Judite e Dona (sim, Dona, por extenso, que o respeitinho é muito bonito) Margarida Etcetera, interrompido de quando em quando para deixar o histrião expressar os seus ressentimentos. Nada que os incomode verdadeiramente, a eles que se sabem todos ao abrigo do destino que nos auguram.
Luis Gottschalk