Carmen Garcia |
Corria o ano de 2010 e eu, para além do trabalho no hospital, acumulava umas horas num lar cujo nome não importa para o caso.
Um dia, em pleno Julho, com temperaturas muito elevadas, apercebi-me que não estávamos a conseguir hidratar convenientemente os nossos utentes. Como a administração não permitia que se ligasse o ar condicionado fora da hora das visitas, a temperatura na sala onde a maioria dos idosos passava parte do dia era assustadoramente elevada. Vai daí tive uma ideia. Pedi que fosse comprada uma garrafa de água pequena para cada idoso e fiz um rótulo personalizado para cada uma, com o nome e um desenho de alguma coisa que permitisse ao dono identificá-la (uma boa parte dos nossos idosos não sabia ler). Depois combinei com todos que no período da manhã queria ver as garrafas ficarem vazias e a mesma coisa no período da tarde. Parecendo que não, só isto já me garantia que cada um ingerisse meio litro de agua por dia, fora do período das refeições.
Um mês mais tarde, em meados de Agosto, estava eu novamente de serviço e um utente veio dizer-me que queria ir para a horta. Reparem, era um homem de 84 anos, que toda a vida trabalhou no campo e era ali que encontrava a felicidade. Como o sol estava forte e ele tinha um sinal estranho no nariz, coloquei-lhe no rosto um protector 50+ que encontrei no armário. Não sei quem mais viu, mas sei que menos de uma hora depois estava de volta ao gabinete a ouvir gritos enfurecidos. Porque o protector é caro, porque tinha que ser bem gerido, porque o senhor tinha oitenta e tal anos… Olhem, já nem sei. Sei que, para mim, foi a gota de água e que tomei ali mesmo a decisão de me despedir.
E serve este relato para quê? Para vos dizer que, em Portugal, a maioria dos lares funciona francamente mal. Quem os gere está quase exclusivamente preocupado com números e é muito difícil romper com práticas hediondas que, por serem tão comuns, passaram a ser encaradas como normais.
Por mais que os estudos nos mostrem que as imobilizações não diminuem o risco de quedas e acidentes, um número gigante de idosos continua a permanecer dias inteiros amarrado a cadeiras de rodas e cadeirões. Por mais que se fale em respeito pela individualidade de cada um, há centenas de camaratas de seis e oito camas espalhadas pelos lares deste país. Por mais que se abomine a infantilização e se fale na sabedoria da idade, milhares de idosos são tratados como crianças incapazes de decidir por si mesmas.
A maioria dos lares deste país tem funcionárias incríveis, acreditem. Mas em número muito inferior ao mínimo admissível. E elas correm de um lado para o outro, num trabalho com uma carga física brutal, mas é impossível chegarem a todo o lado. Os rácios de enfermeiros também são coisa que não passa do papel, porque na prática os enfermeiros são poucos, forçados a trabalhar sem condições e mal pagos.
Eu cá, se fosse a ministra, dava um olhinho ao relatório de Reguengos. E pedia aos serviços distritais de Segurança Social que levassem a sério as queixas que lhes chegam diariamente. Também deixava de fechar os olhos a tudo e mais um par de botas porque, afinal, temos que escoar os idosos para qualquer lado.
É que os idosos são, não só o lugar de onde viemos, mas também o lugar para onde vamos. E merecem, eles e nós, muito melhor do que aquilo que lhes damos neste momento.