“Quando percebi que estava a ficar completamente dependente do boletim diário da DGS, com os novos casos, com as mortes, com as taxas de letalidade, gerais e da minha faixa etária, finalmente decidi pensar porque é que o medo me tinha entrado, em força. Estaria eu capaz de ser sujeito a qualquer privação da minha liberdade, em nome do meu risco de ser infetado?
Durante a fase de confinamento assisti a coisas que me incomodaram, mas que relativizei. Um dia fui passear o cão, perto do Guincho, quando fui abordado pela PSP. “Onde mora?” Respondi que morava perto. “Não pode andar aqui, está a mais de 400 metros de casa, se o voltarmos a encontrar, incorre no crime de desobediência.” Disciplinadamente, regressei a casa e fui procurar onde estavam inscritos os metros de distância, em que podia dar uma volta com o cão. Não encontrei.
Confesso que achei bizarro, mas não voltei a pensar nisto. Continuei a passear, de madrugada, sem nunca ser incomodado. Recentemente, foi notícia a história de uma mulher que apresentava alguns sintomas de covid. Foi ao serviço de urgência e quando lhe iam fazer o teste, fugiu, em pânico. Não foi na Área Metropolitana de Lisboa, foi na Figueira da Foz, zona do país sem nenhum estado especial… Foi “capturada” no dia seguinte pela polícia e conduzida ao hospital para ser testada.
Tanto quanto tenho conhecimento, a única situação, devida a suspeita de doença, em que um cidadão pode ser detido e levado ao hospital é a doença mental. Muitas limitações que nos são impostas, apesar das observações de alguns juristas sobre a legalidade das mesmas, não foram postas em causa pela grande maioria dos cidadãos. Mais, foram acatadas sem grandes problemas. O medo fez bem o seu trabalho.
Com o desconfinamento e maior informação sobre a letalidade do vírus o medo abrandou. Com taxas médias de letalidade de 3,5% para todas as faixas etárias, os mais jovens e os de “meia idade” aperceberam-se que o seu risco era baixo e foram para a rua, como tinham sido instruídos… Mas a partir dos 70 anos a taxa de letalidade sobe para 16%. Felizmente ainda ninguém me pôs num lar — por enquanto — a prevenção depende, quase inteiramente, de mim. Porquê então este medo? Porque fomos bombardeados, durante meses seguidos, com mortes e mais mortes. Com notícias terríveis de semanas de internamento em UCI, que acabavam mal. Mas, sobretudo, com a incerteza. Com opiniões de técnicos e de organizações responsáveis que se contradizem. De agentes políticos que, salvo raras exceções, não têm a coragem de dizer, sabemos ainda muito pouco, mas estamos a fazer o melhor que podemos e sabemos.
Tudo isto fez com que a perceção do risco seja muito maior do que o risco real e olhemos — é o que eu faço e não devia fazer — apenas para o número de novos casos. Politicamente são ótimos para a chicana política. Falar de mortos e de casos internados só rende, quando aumentam. E estão a diminuir…
Sendo médico sei os riscos que corro, não pelo vírus, mas pela idade e pelo azar, que, à medida que o tempo passa, se pode tornar mais azarento. E não vivia com medo. O meu risco de ter uma doença grave nos próximos dez anos é muito maior do que morrer da covid.
Mas nada disto, racional e objetivo, me consegue tirar o medo.
Já marquei consulta para o psiquiatra.”
José Gameiro, jornal Expresso, 1/08/2020