A austeridade acabou?

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APESAR DE SER CADA VEZ MAIS CONSENSUAL QUE OS PROBLEMAS NÃO SE RESOLVERÃO SEM MUDANÇA DAS POLÍTICAS ORÇAMENTAIS, O “FIM DA AUSTERIDADE” NÃO ESTÁ PARA BREVE

A pergunta foi colocada no início de agosto pela Bloomberg. A agência noticiosa dava então conta da alteração de discurso dos líderes mundiais. Os sinais de mudança vão chegando de várias frentes: o reforço do investimento público no Japão e no Canadá, a saída de cena de George Osborne (um dos maiores defensores da austeridade) como ministro das finanças do Reino Unido, as promessas dos candidatos presidenciais nos EUA, entre outros. Assim, a Bloomberg prevê a desaceleração do ritmo de consolidação orçamental até 2020: enquanto os défices anuais foram reduzidos no conjunto do G20 de quase 7% para menos de 3% do PIB, a expectativa é que se mantenham em torno desse valor até 2020.

O fim da austeridade orçamental seria uma boa notícia. O mundo assiste desde há vários anos à adoção de políticas monetárias inéditas, como a adoção de taxas de juro historicamente reduzidas e compras maciças de ativos nos mercados financeiros. Apesar disso a economia mundial continua à beira da recessão. O baixo crescimento do produto, do emprego e dos preços dificultam a redução das dívidas, levando a um prolongamento da crise.

A crescente ineficácia da política monetária tem levado os responsáveis dos bancos centrais e de várias instituições internacionais (incluindo FMI e OCDE) a apelar aos governos para que adotem políticas orçamentais menos restritivas. No entanto, estes apelos continuam a surtir poucos efeitos nos EUA (onde o Congresso dominado pelo Partido Republicano se opõe à adoção de políticas orçamentais expansionistas) e na UE (onde alguns Estados, como Portugal, são empurrados para o prosseguimento da austeridade pelas regras comunitárias, enquanto outros, como a Alemanha, se recusam a aproveitar a folga que têm para aumentar o investimento público). Assim, apesar de ser cada vez mais consensual que os problemas da economia mundial não se resolverão sem uma mudança das políticas orçamentais, e apesar dos sinais que vão chegando de alguns pontos do globo, o “fim da austeridade” não está para breve.

Para perceber este aparente paradoxo é preciso ter em conta a natureza complexa e estrutural da crise económica mundial. Trata-se de uma crise que se arrasta sobre formas distintas desde o final da década de 60, quando o modelo de crescimento do pós-guerra — que permitiu compatibilizar crescimentos dos salários com elevadas taxas de lucro — se esgotou. Desde então, as tentativas para preservar a legitimidade dos sistemas capitalistas no quadro das democracias orçamentais passaram por várias fases. Primeiro, nos anos 60 e 70, pela adoção de políticas monetárias e orçamentais expansionistas, com impactos crescentes na taxas de inflação. Quando, no início da década de 80, se deu prioridade ao controlo dos preços através do aumento das taxas de juro, a preservação da paz social só foi possível através do crescimento das dívidas públicas, atingindo um ponto em que os credores privados começaram a recear eventuais incumprimentos. Isto deu origem à primeira vaga de consolidação orçamental na década de 90. A viabilização política e económica deste processo foi conseguida através de um aumento sem precedentes do endividamento privado, cujos limites ficaram patentes na crise financeira mundial de 2008. Os Estados foram então chamados novamente a intervir, levando ao aumento dramático das dívidas públicas.

Hoje temos uma crise mundial que é simultaneamente bancária, de financiamento dos Estados e da “economia real”. Esta crise não poderá ser compensada pelo aumento do crédito aos sectores privado e público, devido aos já elevados níveis de endividamento. O financiamento das dívidas por emissão de moeda tem acontecido de forma indireta, mas sem resultados significativos até aqui. A redução de direitos e salários parece ser a solução que resta a cada Estado para diminuir a dívida pública e aumentar a competitividade externa. Para as forças conservadoras que controlam vários países este é o cenário ideal para impor mudanças profundas de regime, que não seriam politicamente viáveis de outra forma. Com o mundo inteiro a fazer o mesmo, a procura não recupera, enquanto os riscos de instabilidade política e financeira não param de aumentar, reduzindo ainda mais as intenções de investimento. Para sair deste beco em que o mundo se encontra não chegam os apelos de economistas e banqueiros centrais.

Ricardo Paes Mamede
Professor de Economia Política no ISCTE-IUL

Expresso 10.09.2016