Quando os EUA proclamaram a sua independência, o abade Correia da Serra, amigo íntimo de Jefferson, escreveu-lhe uma carta vaticinando que caberia, à nova potência, coordenar o Norte do continente, mas não descurou antever a mesma função para o Brasil, no que respeitava ao Sul. Nesta data, o abade haveria de ter inquietação sobre as suas capacidades de previsão, porque ao norte o trajeto do poder alargou-se a ponto de conseguir desenhar os mapas, como fizera a Europa, colocando-se no centro do Globo, e ao sul havia de sentir-se substituído por Stefan Zweig, ao elaborar este as memórias que escreveu para lhe servirem de epitáfio depois do suicídio que decidira praticar.
A expansão dos EUA talvez possa assumir como primeiro parágrafo do conceito estratégico a Doutrina de Monroe de 1823 (isolamento), abandonar depois a lenda de gratidão aos deuses por terem colocado o Atlântico a salvaguardá-los da Europa conflituosa, reconhecendo, com a intervenção nas duas guerras mundiais, que esses crentes se enganaram, e por isso assumindo-se como a Casa no Alto da Colina do identificado Ocidente. Mas um Ocidente moldado com a perspetiva de serem o centro do mundo, enquanto elaboravam o estatuto da Sociedade das Nações, pelo qual o presidente Wilson obrigou a redefinir a estrutura política da Europa derivada da falida intervenção napoleónica, acabando com os impérios alemão, austro-húngaro, russo, turco, invocando o princípio de cada nação ter um Estado, para finalmente, quando terminou a Segunda Guerra Mundial, os EUA, inscrevendo na Carta da ONU a descolonização, colocarem, com os aliados, um ponto final no império euromundista. Aparentemente, talvez tenha de reconhecer-se um novo ponto final neste modelo filiado na história americana com a eleição do atual presidente, que até agora, sem talvez conhecer o autor, nos lembra S. John Jkenbeirr (2011) quando escreveu o seguinte: “Unilateralismo, evidentemente, não é uma nova característica política internacional americana. Em cada época histórica, os Estados Unidos mostraram uma vontade de rejeitar tratados, violar regras, ignorar aliados, e usar a força militar no seu interesse.”
Talvez seja mais benevolente, e também exato, que demonstraram sempre uma tendência para a fidelidade e um conjunto de valores de que a Declaração de Direitos da Virgínia é o núcleo fundamental, e que, não ignorando nunca a variação das conjunturas, mantiveram por conceito estratégico “o permanente interesse nacional, de conteúdo variável”. Os cemitérios da Normandia facilitam o entendimento, especialmente pelos europeus, dessa linha, sobretudo numa data em que a União Europeia continua sem conceito estratégico, com uma organização de governança cujos órgãos coincidem acidentalmente com o poder, e com a considerável iniciativa de hierarquizar os membros (porque a França é a França), e de amenizar a espontaneamente divulgada semântica, substituindo o qualificativo, para os mais fracos, de protetorado, pelo uso da reconfortante valoração de bom aluno.
A evidente falta de estadistas, como foram os da guerra e fim da guerra, inclina a avaliar a nova época, americana e europeia, como o início do Outono Ocidental. Não eram muitos os esclarecidos que vaticinavam a eleição do próximo presidente dos EUA, também frequentemente esquecidos da experiência antiga de optar pelo mal menor, sem a nenhum observatório ocorrer que a mudança de época correspondia, pelo já proclamado e praticado, a um esquecimento da história longa dos EUA, suficientemente longa para que um povo tenha desenvolvido e consolidado a identidade de nação, sem diferenças contraditórias dos vários grupos, incluindo etnias e culturas, que se fundiram sob tal valor. A rutura dos tratados em vigor, que logicamente é deduzida das declarações e cooperadores escolhidos pelo eleito, a displicência em relação às obrigações com o Ocidente e o mundo medida pelo critério financeiro, a indiferença em relação ao destino da Terra e aos tratados assumidos, inspirada pelos programas económicos e superioridade do mercado, a divisão étnica com história desde que foi iniciado o povoamento do território, tudo parece ter inspirado o discurso, já antigo, com que Obama, em fins de mandato, gritou “somos todos americanos” e não o tradicional apelo à proteção divina.
Na viagem em que tem gasto os seus últimos dias de mandato, falando com líderes que percebem a exigência do “credo dos valores” a condicionar o “mercado”, as suas intervenções comprovam a sua formação humanista, mas não garantem a dimensão sonhada do seu legado. De facto, há motivos para uma crescente inquietação das sociedades civis, não apenas ocidentais, e poucos para a esperança que nesses encontros quis deixar de que a graça de Estado pudesse ajudar o novo eleito a compreender a história passada do seu país e dos restantes povos que a seu lado têm vindo, com erros e acertos, a fazer crescer o humanismo.
A única coisa segura é que o imprevisto está à espera de uma oportunidade. A esperança tende também por isso para uma debilidade global, a que é urgente atalhar. Qualquer estadista responsável, ainda que sem ter passado pelas áreas de governo, mas inevitavelmente tendo vivido a tormentosa época em que lhe aconteceu nascer e viver, tem de possuir o discernimento suficiente para responder à acumulação de riscos, que não são apenas para um país, são para o globalismo das interdependências de que vamos sabendo os consequencialismos mas com mais atraso as causas. Para a União Europeia, na coincidência de celebrar os quinhentos anos da Utopia do Santo Thomas More, protetor de governantes e parlamentares, não vem tranquilidade suficiente para enfrentar os desafios da imprevisibilidade da política do novo presidente dos EUA, o segundo brexit do Reino Unido cinco séculos depois do primeiro de Henrique VIII, a imprevisibilidade das eleições na França, na Alemanha, na Itália, com a única certeza, a de que o imprevisível consequencialismo ameaça obrigar a redefinir, se possível, o equilíbrio que se chama paz.