A Europa do arame farpado

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Uma Europa vive em Bruxelas, faz conferências de imprensa diárias ao meio dia, reúne em cimeiras com pompa e circunstância como se do encontro a uma mesa de vários homens, investidos no cargo de ministro, saísse o futuro do mundo. Poderia sair ou, pelo menos, de uma parte dele. Na outra Europa, na outra parte, as decisões de Bruxelas soam a palavras vãs, algo distante; tarda a concretizar-se ou carece de mecanismos efectivos para acontecer. Uma Europa nómada e acossada de milhares de homens, mulheres e crianças: deslocam-se ao sol e à chuva, empurrados pela guerra. E esbarram em fronteiras fechadas, muros, vedações de arame farpado – militares e polícias a empurrá-los sempre para um outro destino.

As imagens parecem irreais, de filmes de arquivo de outros tempos, de má memoria, nesta Europa a perde vertiginosamente o sentido primordial da solidariedade. Não, não estamos a visualizar imagens de arquivo. Vemos, ouvimos e lemos (e por isso, como dizia Sophia, “não podemos ignorar”) a crua realidade a crescer como enorme onda de indignidade, algures no velho continente. Quem ouve os dirigentes europeus, domingo reuniram para mais uma cimeira, é tentado a acreditar que a solução está em curso. Ingenuidade nossa. Os números estão aí e são da própria Comissão Europeia: até à passada sexta-feira, tinham sido instalados 68 refugiados em países de acolhimento, sobretudo na Finlândia e na Suécia. Sim, esses mesmos, colocados num avião, em Roma, debaixo dos holofotes das televisões, dando a ideia de que o processo estava finalmente em curso. Nada mais aconteceu após a partida dos 68 refugidos, imigrantes, homens fugidos à fome e à guerra. E eles muitos milhares de milhares amontoados nos Balcãs. A última cimeira decidiu acolher mais 100 mil – metade ficará na Grécia.

Em 1915, há exatamente 100 anos, Sonia Delaunay, também ela refugiada, dizia a um jornal de Vila do Conde – terra da luz intensa que a protegeu da guerra a grassar na Europa – que “os políticos não estão a atuar, olham apenas para os seus próprios interesses”. A pintora modernista alerta: vê a fome a crescer e “os esfomeados, um dia, também se revoltam”

Ouço as palavras da pintora das cores luminosas, sentada numa sala branca, a ver a exposição que assinala os 100 anos da sua passagem por Vila do Conde. O tempo existiu? As palavras de Sonia são de hoje: e isso apenas encerra em si a tragédia em que vivemos.

Paula Ferreira
Opinião JN 27.10.15