A palavra do ano

4

Parecia estar tudo encaminhado. Depois de semanas de sangria nas costas da Europa, eternizadas por imagens cruas nas capas da Imprensa mundial; depois das lágrimas vertidas sobre os cadáveres das crianças enroladas no quebra-mar (ontem foram mais três na Turquia); depois do olhar complacente dos líderes europeus, dentro e fora das cimeiras convocadas com relativa urgência; depois de, mais uma vez, Bruxelas lançar um camião de dinheiro sobre o problema; depois de a Europa estender o braço morno do acolhimento sobre dezenas de milhares de refugiados, abrindo-lhes as fronteiras; depois de a inquietação coletiva ter serenado; depois disto tudo, pudemos, enfim, suspirar de alívio. A crise dos migrantes parecia estar resolvida. Pelo menos nas nossas consciências.

Era vê-los, correntes revoltas de gente, a percorrer a pé as autoestradas do Velho-Novo Continente, a encher comboios, a deixar-se fotografar. Sorrisos luzidios. A aculturação começara. Emprego para os pais, escola para os filhos. Mas eles continuavam a chegar. Apesar do inverno. E a Europa, que sentia que já tinha feito a sua parte, parecia mais a ilha rodeada de caos do que a firme terra prometida.

Da solidariedade sem amarras, rapidamente evoluiu para o mais frio dos pragmatismos: o acordo de Schengen, que consagra a livre circulação de pessoas, foi posto à prova. Até ficar com as costuras tão largas que o deixaram quase sem sentido. O muro que a Hungria ergueu para impedir a entrada de indesejados já não é um ato isolado. A “epidemia”, como apropriadamente o caraterizou António Guterres, alastrou-se a mais países. França, Áustria, Alemanha, Dinamarca, Noruega e Suécia ativaram já os controlos internos fronteiriços. “(Assistimos) a uma multiplicação de atos individuais de países europeus, com políticas cada vez mais restritivas, cada um procurando ser mais restritivo que o vizinho, para ver se os refugiados vão para o vizinho em vez de irem para o país que toma estas medidas”, lamentou o ex-primeiro-ministro português e ex-alto-comissário das Nações Unidas para os Refugiados. Esta podia bem ser a sinopse do filme.

No afã de ser politicamente correta, a Europa não quis assumir a sua impotência perante a crise migratória. Não tratou de resolver o problema na origem, promovendo um acordo com os países do Médio Oriente e cortando pela base o negócio dos traficantes, eles sim os maestros desta lógica distributiva. Quis ser boazinha, mas acabou sendo desastrada. É verdade que acolheu muita gente (e nisso Alemanha e Suécia foram exemplares), mas o rácio mantém-se residual. Havia espaço. Se houvesse vontade. “Temo que o sistema de asilo europeu possa colapsar este ano e isso seria uma tragédia de proporções indescritíveis”. António Guterres já avisara. Fá-lo, agora, de novo.

A Europa procurou ser solidária. Só conseguiu ser solitária. A palavra do ano não é refugiado. A palavra do ano é fracasso.

Pedro Ivo Carvalho
Opinião JN 06.01.2016