Não se sabe o que é eles saírem e não se sabe o que é nós ficarmos. Nós? Como se definirá agora “europeus”? Se os mercados financeiros tratam de expectativas, os povos tratam-se de esperança; e se Bolsas oscilam pela indefinição, pessoas paralisam com medo. A The Economist pode repetir a manchete da crise de 2008: “Oh Fuck!”. Oh fuck…
Entrar em pânico com as Bolsas é tão instintivo como entrar em euforia com o castigo merecido às instituições europeias. Mas primeiro o que virá depois: o projeto europeu é um projeto de paz e é esse projeto que agora está golpeado. A História da Europa será outra porque a União Europeia não será mais aquilo que era – nem aquilo que queria ser.
A Europa cismou tão obcecadamente na economia que deixou deslaçar a política, negando-se à interpretação óbvia de que o crescimento dos partidos extremos e populistas era a metastatização da própria insubordinação popular. Insubordinação ao “projeto europeu”, vazio de representação democrática e cheio de contradições paralisantes. A separação entre lideranças e povo tornou-se a superioridade de uns contra a força dos outros. O Reino Unido quer sair daqui, onde nos deixa em choque.
Muitos argumentos foram populistas, a força é popular. E é uma força de destruição, não de construção. Os novos muros na Europa começaram a erguer-se contra os imigrantes. Continuam a erguer-se agora contra a “livre circulação de pessoas, bens e capitais”. Contra o espírito fundador da União.
O Reino Unido está ele próprio sob ameaça de desagregação. Os efeitos económicos imediatos serão devastadores, o PIB britânico contrairá, o desemprego, a libra, o investimento, a praça financeira, as relações comerciais serão mais ou menos afectadas conforme o processo decorra e se atenue ou acelere o processo de saída. Os partidos políticos britânicos serão virados do avesso, novos líderes assomarão, num reino que sai rasgado desta votação e não estará unido na absorção das suas consequências.
Mas é a União Europeia que é atirada da estrada sinuosa que percorria, para uma ribanceira imprevisível. O efeito dominó é inescapável: outros estados membros quererão referendar a permanência na União. O equilíbrio político reposiciona-se entre a Alemanha e a França, sem a força política britânica, que servia de contrapeso liberal ao proteccionismo gaulês. Os alemães nem devem acreditar no que acaba de acontecer. Não é um muro de Berlim, é um murro em Berlim. Até porque a própria liderança europeia, por difusa e instável que fosse, será mais contestada pelos demais países.
Londres acordou esta sexta feira debaixo de um sol quente, depois da chuvada matinal da véspera. Na madrugada, os resultados haviam provado que as sondagens estavam erradas – e que o euroceticismo (e a eurofobia) vencera o referendo. Na vertigem imediata, a libra e as Bolsas caíram a pique, os bancos centrais ativaram planos B e o primeiro-ministro David Cameron demitiu-se. O processo de saída está por definir, no tempo e nas medidas, mas é inexorável.
400 anos depois da morte de Shakespeare é nele que ainda encontramos tudo o que nos define. O poder. As nações. A política. A perfídia. As pessoas. “And the thousand natural shocks” de Hamlet. E os mil choques naturais que nos consomem e que não controlamos, mesmo quando os provocamos. Desejar que este seja o início de um movimento regenerador de uma União Europeia doente é uma forma de ter esperança. Mas essa esperança não se anuncia sem um movimento político com liderança forte e que esteja legitimado pela representação popular, que una em vez de dividir, que partilhe em vez de impor, que continue a acolher e não passe a rejeitar. Hoje, é mais o medo que a incerteza que nos oprime a ação. Mas é isso que precisamos: “To take arms against a sea of troubles”.
Enfim, não é o fim do mundo. É só o fim da Europa.
Expresso Diário 24.06.2016