Acordai, acordai!

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Como chegámos aqui?! Pela insidiosa desatenção dos governantes face aos governados, pela captura dos valores da política pelos interesses do capital financeiro

Passou devagarinho, como se não fosse nada, o 110.o aniversário (17 de dezembro p.p.) de Fernando Lopes Graça, falecido a 27 de novembro de 1994. Intelectual insigne, antifascista convicto, atravessou o século xx deixando atrás de si obra literária e, sobretudo, musical – compositor e maestro – inapagável, de altíssimo gabarito, se não a maior do seu tempo. Datam de meados desse século as conhecidas “Canções heroicas”, musicando poemas de, entre outros, José Gomes Ferreira. É o caso de “Acordai” – “Acordai/ acordai/ homens que dormis/ a embalar a dor/ (…)” –, verdadeiro hino à resistência, à não resignação.

Em tempos de incerteza e de horizontes negros, como são aqueles que vivemos, “acordai!” é o grito que se nos escapa quando ainda não nos tolhe o medo e enquanto a insensibilidade, à força de dissimulada desinformação, não nos toma de todo. Explicam-nos que os populismos não são necessariamente xenófobos ou racistas, até os há de direita e de esquerda, são antes a inevitável consequência de governos que se afastaram do povo que governam. E eis que emergem os novos salvadores do mundo, heróis de pátrias sitiadas por elites desonestas e corruptas, que prometem voltar a dar ao povo o que é do povo, devolver-lhe o poder de escolher e decidir. Que jactância!

Acaso se presume que o tresloucado presidente americano, que está a pôr o mundo em polvorosa, age com até agora impune arrogância em nome do povo com quem se diz irmanado? Ele emparelhado com os esquecidos da política, os deserdados da economia capitalista?! Ora, basta ver quem ele é e de onde vem, c’os diabos! E como os acasos não acontecem por acaso, o sinistro Vladimir Putin aplaude a chegada ao poder do amigalhaço – bem ao gosto da sua personalidade esquizoide-czarista – e, coincidência, recrudesce a guerra na Ucrânia por ação dos rebeldes pró-Rússia. Bem aqui ao pé – i.e., num Estado-membro da UE –, que da distante Síria já pouco se fala, a guerra continua, a matança também, e os amigos improváveis – Putin e o turco Erdogan, da mesma igualha – esfregam as mãos de contentes: este Trump veio mesmo a calhar! E de Israel, acossado pela recentíssima resolução da ONU contra os colonatos, veio um entusiástico “bem-vindo” de Benjamin Netanyahu. E como se não bastasse, o britânico Nigel Farage, campeão do Brexit e que faz questão de manter – enquanto puder – o lugar de eurodeputado, provocou tudo e todos ao fazer o elogio, rasgada e descaradamente, de Donald Trump num discurso no Parlamento Europeu. Topete não lhe falta, para mais ciente de que colhe louvor junto dos seus compinchas europeus, nem todos com a mesma tribuna ao dispor. Mas com crescente, preocupante e assustadora audiência, entendamo-nos…

Como chegámos aqui?! Pela insidiosa desatenção dos governantes face aos governados, pela captura dos valores da política pelos interesses do capital financeiro, essa entidade sem rosto, omnipresente e poderosa. E que mais? Não adianta chorar sobre o leite derramado, tampouco alijar-se das responsabilidades ou efabular conspirações secretas. A propalada “crise da democracia” deixou de ser um problema conceptual, é um risco iminente.

Acordai! Acordai! Acordai! Enquanto é tempo…

Maria Helena Magalhães

Jornal i Opinião 08.02.2017