Aprender com a Segurança Social

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Um ano depois do colapso do Banco Espírito Santo (BES) e do grupo do mesmo nome, que por sua vez se seguiu a uma crise financeira sem precedentes, com os Estados a serem chamados a injectar milhares de milhões de euros em situações de falências, más gestões e fraudes bancárias, dir-se-ia que era má altura para partidos em campanha eleitoral, sobretudo em países com crises sem fim à vista, recuperarem propostas de privatização, mesmo que parcial, do sistema de Segurança Social.

Dir-se-ia mesmo que dificilmente poderiam encontrar pior momento para o fazer, pois está muito viva a memória da facilidade com que as perdas de instituições bancárias se repercutem em perdas para os investidores privados e para os orçamentos públicos, da situação em que ficam os que depositaram as poupanças de uma vida de trabalho em fundos bancários. Neste cenário, cuja repetição é mais que provável numa economia financeirizada que os poderes públicos mal regulam, quem arriscará entregar parte dos rendimentos do seu trabalho a fundos de pensões privadas ou mutualistas quando o risco é ficar sem nada?

O problema é que as aprendizagens que as sociedades fazem sobre os dramas que as afligem são, elas próprias, um campo de combate. E o drama de um sistema financeiro instável, orientado para interesses privados mas protegidos pelos poderes públicos quando se trata de escolher a quem infligir perdas (bancos ou cidadãos), não é o único que aflige o cidadão comum. Não é sequer necessariamente o drama que todos vêem por detrás dos problemas que enfrentam no quotidiano – apesar de nele residir a compreensão do capitalismo financeiro actual. No quotidiano, para a maioria, o difícil é pagar as contas do mês, ter emprego ou viver com uma pensão de pobreza e constantemente reduzida.

Se, por um lado, a confiança no sector financeiro pode atingir mínimos históricos, e se a compreensão da sua responsabilidade na crise talvez nunca tenha sido tão elevada, também é verdade que a degradação da confiança nos poderes públicos – com governos e Estado a serem bastante confundidos – não lhe fica muito atrás. Quando a coligação hoje no governo se apresenta a eleições propondo, mesmo que quase sem dados concretos, uma privatização parcial da Segurança Social, está também a colher os trágicos frutos de uma governação que se empenhou activamente, com grande sucesso, em retirar aos cidadãos a confiança no Estado social e nos seus subsistemas de Saúde, Educação e Segurança Social – a confiança de que este definia e protegia um quadro universal, redistributivo e solidário destinado a promover igualdade de oportunidades para todos e uma sociedade de bem-estar.

Como explicar de outro modo, por exemplo, que Pedro Santana Lopes consiga afirmar várias vezes no Frente a Frente da SIC Notícias (4 de Agosto de 2015) que não há ninguém nas gerações dos 30 e dos 40 anos que acredite que terá direito a uma pensão da Segurança Social actual, o que justifica, a seu ver, a procura de alternativas de financiamento, sem que isso suscite a oposição do membro do Partido Socialista presente, António Vitorino, e que obtenha até um olhar de concordância por parte da jornalista Ana Lourenço, normalmente imperturbável, quando é repetidamente instada pelo entrevistado a rever-se naquele perfil geracional? É assim que se vai criando o senso comum dominante, esse «toda a gente sabe» que na verdade se inspira numa parte (significante) da realidade para construir uma outra (generalizada) assente em propostas que passam a escapar cada vez mais ao debate democrático das alternativas.

Neste último ano de vida política activa de Aníbal Cavaco Silva, convém lembrar que estas propostas de reconfiguração neoliberal do Estado e da sociedade não são de agora. Desde a primeira experiência neoliberal, protagonizada por Cavaco Silva no final dos anos 80 e em grande medida mantida pelos governos que se lhe seguiram, que estão em cima da mesa medidas que ameaçam destruir o Estado social de acesso universal e tendencialmente gratuito, fundado na redistribuição fiscal e contributiva. Mais sociais-democratas ou mais sociais-liberais, a machadada surge com a incapacidade de perceber que deixar de garantir o financiamento sustentável de um sistema é trabalhar para a sua perdição.

Nos anos 80 e 90 assiste-se às primeiras experiências de ensino superior privado, hospitais privados e seguros de pensões privados. Mas o seu alcance ficou aquém das expectativas liberais, fosse pela exiguidade do mercado, fosse pelo apego dos cidadãos aos seus serviços públicos. Como certamente aprenderam os neoliberais, é muito mais difícil impor transformações que põem em causa a democracia e o Estado social a sociedades que não estejam em crises profundas e onde eles funcionem bem. Seguiram-se anos de imaginação de engenharias liberais para menorizar o risco dos investidores privados (concessões, parcerias público-privado…) e de degradação dos serviços, devidamente acompanhada por campanhas mediáticas muito centradas em casos chocantes.

Com a crise, a construção fáctica e mediática do «não há dinheiro nem alternativa» deu aos governantes o pretexto da dívida para se aceitar uma arquitectura institucional e monetária europeia fundada em regras irresponsáveis e devastadoras do Estado social. A proposta da coligação de permitir que os cidadãos detentores de maiores rendimentos possam, a partir de um determinado nível de descontos, retirar uma parte das suas contribuições do sistema de Segurança Social (sistema de plafonamento) [1] não é apenas uma forma de favorecer os negócios de fundos privados e mutualistas. É também uma forma de excluir do sistema público grande parte dos meios financeiros que lhe garantiriam a sustentabilidade, sobretudo num contexto em que ela é ameaçada por todas as outras políticas em curso (fomento da emigração, do desemprego, dos salários baixos, etc.).

Depois de retirar cada vez mais poder de compra aos actuais pensionistas e de abandonar à lei da selva grande parte dos que excluiu da protecção social (a começar por metade dos desempregados), a coligação no governo entende ser altura de dizer o mínimo possível sobre os próximos cortes a infligir aos pensionistas actuais (de onde virão os 600 milhões de euros prometidos a Bruxelas?) e de aliciar os que agora entram na vida activa a perder toda a esperança de virem a ter uma pensão digna e paga pelo Estado. Que percam toda a esperança na universalidade, na redistribuição, na solidariedade inter-geracional, isto é, nos mesmos princípios de funcionamento que deram ao trabalhador recém-chegado à vida activa cuidados neo-natais, planos de vacinação, escola pública, avós que puderam ajudar os pais quando eles foram para o desemprego e muitas outras realidades até há pouco tão inscritas no nosso ADN civilizacional que nos esquecemos de as defender.

A «liberdade de escolha», essa mesma que deixa de fora pobres e classes médias e cria o Estado social mínimo e assistencialista, é um monstro que ciclicamente toma por alvo o subsistema público que considera, nesse momento, mais permeável. Desta vez quer entrar pela Segurança Social, mas os seus efeitos são sempre os mesmos: destruir um sistema público e universal que é, em todos os países onde aplicado, o factor que mais contribui, a par das leis laborais, para tornar as sociedades mais coesas e justas. Convém lembrar isto, e travar este combate. Mas sem esquecer que, a prazo, o pior carrasco do Estado social será aquele que, neste momento decisivo, não exigir a reestruturação da dívida, não compreender que esta Europa não é a da democracia e a da justiça social, e se limitar a encaminhar-nos para o abismo do empobrecimento perpétuo.

Sandra Monteiro
Le Monde diplomatic 09.08.15
http://pt.mondediplo.com/spip.php?article1066

Notas
[1] Para mais informação, ler http://www.jornaldenegocios.pt/economia/seguranca_social/…