Quando me ligam a dizer que tenho de ir para Pedrógão, na mochila há espaço para água, muita água, um lenço para tapar o nariz do fumo, telemóvel para gravar conversas e imagens, um bloco e uma caneta. Vou à caixa onde guardo os cadernos e pego no primeiro que me chega às mãos. Reparo que a capa diz “As minhas histórias do arco da velha”. Rio-me com a ironia ao antever que, no regresso, estas páginas – que, aliás, não chegaram – vinham cheias delas.
Foi estúpido pensar que as histórias do arco-da-velha destes dias iam caber neste caderno minúsculo. Quase tão estúpido como reduzir Pedrógão a canadairs que afinal não caíram, à descoordenação no combate ao fogo ou ao ódio desmedido ao trabalho dos jornalistas.
Pedrógão não é isso. Pedrógão é a Dona Cristina do café, que oferece o chão de sua casa para os vizinhos lá dormirem. Pedrógão é a Marta da Conceição, que me mostra as nódoas negras por, aos 84 anos, ter sido levada em braços para dentro de um tanque, onde passou horas a ver tudo à volta desaparecer. Pedrógão é a Isabel, que mesmo dois dias depois de o filho Diogo ter saído de casa sem voltar, ainda acredita que ele pode estar num hospital. “É por isso que ele não atende, não é?”.
Pedrógão é ver um comandante dos fuzileiros que, mesmo depois de décadas de missões em Timor e no Afeganistão, me diz a chorar que ninguém merece ver aquilo que ele encontrou na nacional 236. Pedrógão é ver a Diana a beber RedBull atrás de RedBull para se aguentar com três horas de sono em quatro dias, a organizar refeições para todos os bombeiros que chegavam ao quartel. Pedrógão é ver os ingleses Julie, Cris e Liz a agradecer aos portugueses, “os melhores vizinhos do mundo”.
Pedrógão é vir com a roupa do corpo e ter de comprar todos os dias uma t-shirt numa loja dos chineses. Pedrógão é tomar banho e, mesmo assim, ver a toalha preta de sujidade. Pedrógão é largar o gravador para abraçar os poucos que sobraram de Nodeirinho ou pousar o bloco e a caneta para entregar água aos bombeiros.
Pedrógão é receber dezenas de mensagens quando a “última hora” das televisões diz “jornalistas cercados pelo fogo”. Pedrógão é passar três dias a comer fruta roubada no pequeno-almoço de um hotel que serve apenas para descansar o corpo. A cabeça, essa, não se desliga destas histórias do arco-da-velha.
Marta Cerqueira