Um dos grandes princípios assumidos pela União Europeia, quando a evolução baseada na ONU dava por terminado o sistema colonial, foi o da livre circulação. Não faltam textos que recordam o princípio sempre que a defesa da União é chamada a combater o desânimo que as crises semeiam entre os europeus nativos, mas é necessário tornar sempre claro que não estão em vista nem o recrutamento de mão-de-obra barata de nativos das antigas colónias, como foi prática suficientemente injusta e longa, mas a crise das imigrações que transformou o Mediterrâneo num cemitério, e desencadeou um conflito ético entre os deveres humanitários da moral e dos tratados e a segurança interna dos Estados.
O efeito inesperado desta diferença foi o renascimento dos mitos raciais, que acrescentaram ao negro capítulo da Segunda Guerra Mundial o anti-islamismo que se agrava. Esta dialética mergulhou a União Europeia num complicadíssimo e difícil processo legislativo, que alguns pessimistas filiaram na conclusão de que “os refugiados são culpados do afundamento do regime do asilo europeu comum”, quando, como frequentemente acontece, é que nem a União nem os Estados puderam antecipar as causas, e sobretudo efeitos, do inesperado movimento de refugiados, quer em relação aos princípios e efeito da livre circulação, designadamente: como diminuiu o movimento clássico das migrações para o mercado de trabalho, tendo em vista a causa atual mais determinante, que é a guerra nas terras de origem, como integrar essa crescente multidão nas sociedades europeias, elas em crise económica e financeira?
Pareceu desde logo evidente que o direito de asilo, previsto nos sistemas nacionais, não era remédio suficiente para a dimensão do desafio, mas tem de sublinhar-se, porque foi realista, que essas sociedades europeias assumiram largamente o facto de que o regresso dos emigrantes aos territórios de origem não era de esperar, e foram numerosas as mobilizações voluntárias para lhes acudir, com intervenção da economia social na medida em que está salvaguardada, as próprias universidades não falharam, de tal modo que talvez devêssemos admitir que a sociedade civil que está a ajudar a criatividade das governanças públicas, animou estas, cujo empenho talvez tenha data de começo responsável no comunicado da Comissão Europeia de 6 de abril de 2016, anunciando o propósito de reformar o regime comum europeu de asilo.
Tem sido evidente que conseguir, por via legislativa, uma atitude comum dos países reunidos da União, se depara com dificuldades nacionais variadas, que já se tornaram evidentes a partir de 2015, quando em agosto o número anunciado de refugiados, que chegaram por via marítima, atingiu cem mil pessoas. Foi então que a Hungria decidiu iniciar a construção de um muro na fronteira, antecipando a imaginação do atual presidente dos EUA quanto à fronteira com o México. É de lembrar que a solidariedade dos destinatários das migrações na Europa tem evidenciado, e continuará a manter, atitudes discordantes, sendo que a mais apaziguadora, e de menos viabilidade calculável, é que os emigrantes regressem às pátrias que a guerra se tem encarregado de destruir. Inscrita a solidariedade europeia nos Tratados de Amesterdão e de Lisboa, estabelecidas as bases do programa de Haia de 2004, dando origem a um Fundo de refugiados do ano de 2000, todavia a difícil repartição física não tem encontrado soluções eficazes.
O que tudo obriga a meditar sobre o renascimento dos mitos raciais, como disse, acrescidos aos antigos e renascidos mitos do negro, do judeu, do ariano, do mestiço, e agora do anti-islamismo. Isto não tem que ver com a defesa contra a infeliz violência armada entre Estados e áreas culturais, étnicas, ou religiosas, diferenciadas pelos interesses, pela história, pelos projetos estratégicos: tem que ver com o personalismo defensor e mantedor da paz nas sociedades civis que os recebem, com as capacidades disponíveis. Mas importa à sociedade civil, e forças do Estado, não esquecer, por exemplo, esta síntese de E. Mounier: “Ela [a ideia chave do personalismo] opõe-se a qualquer forma de racismo e divisão em ceitas, à submissão dos deficientes, ao desprezo pelo estrangeiro, à negação totalitária do adversário político”: por muito diferente que seja, e por muito envilecido que esteja, um homem continua a ser sempre um homem e devemos permitir-lhe levar uma vida de homens, princípio que consta dos programas das nossas forças de segurança, que deriva da Declaração Universal de Direitos do Homem, dos princípios da moral, do património imaterial da humanidade no qual, em parte importante, está a contribuição doutrinal portuguesa. A UNESCO tem sido uma sustentadora desse património. Os mitos raciais são um instrumento intolerável pela justiça, pela sociedade civil e pelo Estado.
Adriano Moreira
Ler mais em : Opinião DN 19.07.2017