Dizer que o nosso sistema de pensões é insustentável “carece de demonstração”, afirma. As contas da Segurança Social explicadas por um dos maiores especialistas na matéria
O sistema público de pensões é insustentável?
Afirmações dessas são muito categóricas e carecem de demonstração. Razões sobretudo demográficas, económicas e de amadurecimento do sistema levam a que o regime previdencial tenha acrescidas dificuldades, isso é indiscutível. Agora, não gosto desta coisa de passar a certidão de óbito da Segurança Social (SS) com um ar de postulado ou axioma. Em 1997, o Livro Branco da Segurança Social previa o início do colapso do sistema no ano de 2015. Essa previsão era feita com as seguintes hipóteses macroeconómicas: crescimento do PIB a 2% (algo que praticamente ainda não tivemos neste século) e taxa de desemprego a oscilar entre 4,5% e 5% (coisa que é pura utopia). E, mesmo assim, o colapso começaria em 2015.
Mas isso não aconteceu…
Não. Apesar do desemprego ser muito mais elevado e a produção de riqueza muito mais diminuta. E não aconteceu porque se tomaram medidas de alteração de parâmetros: a idade de reforma, o fator de sustentabilidade (há 30 anos, a esperança média de vida aos 65 anos era de cerca de 14 anos mais, e agora é de cerca de 19 anos mais), a convergência das pensões, a consideração de toda a carreira contributiva para a formação da pensão, a penalização de reformas antecipadas, etc.
No entanto, nos últimos anos, com a crise, o dinheiro das contribuições da Taxa Social Única (TSU) não tem chegado para pagar as pensões…
Essa é a questão mais pertinente. Tem-se falado do efeito da demografia. Os velhos agora são mais caros porque vivem mais tempo? O que é isto? Queremos produzir uma eutanásia social? É verdade que nascemos menos e sobretudo vivemos mais tempo, o que é ótimo, é um avanço civilizacional. Mas, aí, as medidas de que falei fazem um ajustamento automático, é uma questão algébrica. O problema é a economia. Primeiro porque sendo a Segurança Social um sistema de distribuição de riqueza, depende da criação da riqueza. Se o bolo diminui ou não aumenta como deveria aumentar, há dificuldades. Sobretudo por causa do desemprego. Não se deveria usar o rácio de dependência de ativos sobre reformados. Os ativos são constituídos por empregados e por desempregados. O rácio devia ser empregados sobre reformados.
E ainda assim as contas da Segurança Social não lhe mostram que esta é insustentável…
Não, não me mostram. A certa altura é uma moda falar-se da insustentabilidade do sistema de Segurança Social. Porque é que ninguém fala da sustentabilidade ou insustentabilidade do sistema de saúde? Que, aliás, é muito mais gravoso, porque vive-se mais tempo e há mais patologias na velhice. Ou do sistema de justiça? Porque a SS baseia-se em prestações monetárias, em dinheiro transferido. Ao passo que a educação, a saúde e a justiça baseiam-se em atividades. Portanto a ideia da sustentabilidade, nestes casos, é mais difusa. Curiosamente, fala-se da insustentabilidade da SS, que é o único sistema que tem um fundo de reserva. Não é que seja muito, são cerca de 14 mil milhões de euros, mas dá para mais de um ano de pensões. Algum outro sistema em Portugal tem um fundo destes? Não tem. Em Espanha, o fundo cobre pouco mais de 6 meses de pensões.
Qual é o peso dos desempregados nas contas?
Os desempregados têm três consequências gravosas para a Segurança Social. Primeiro, o pagamento de prestações [subsídio de desemprego], que anda à volta dos €2,7 mil milhões. Segundo, uma pessoa desempregada não desconta para a TSU – nem ela nem o patrão – e não paga IRS. Mas, atenção, que os desempregados subsidiados são metade dos desempregados. O que significa que é preciso somar todos na perda de receitas, o que andará à volta de €4 mil milhões. Terceiro, em Portugal, quando a pessoa está desempregada ou doente, não tem descontos, não tem salário, mas, para efeitos da sua pensão de velhice, existe o chamado princípio de equivalência contributiva, o que é corretíssimo. É como se estivesse a descontar. Cálculos por alto, isso significa que o Estado está a gerar responsabilidades futuras, com os desempregados, de um valor que não recebe, que será de €1,1 mil milhões. Ou seja, no total serão €7,8 mil milhões. Este é o principal fator de estrangulamento da Segurança Social, não há outro. Qual demografia?! É o desemprego!
Há equívocos nas contas da Segurança Social?
Em primeiro lugar, do lado das receitas tem de se considerar o IVA social (2 pontos percentuais) porque este surgiu precisamente para financiar prestações do sistema previdencial e contributivo. Depois, as transferências para o Fundo de Estabilização aparecem como despesa, o que não faz sentido nenhum. É como se uma pessoa fizesse um depósito a prazo e considerasse o que punha de parte como despesa e não como investimento para poupança. ?A seguir, as pensões, atualmente, pagam o mesmo IRS que outro tipo de rendimento. Ora, para se perceber se a SS é sustentável ou não, deveria considerar-se apenas a pensão líquida de IRS. Finalmente, nas pensões do regime previdencial contributivo tem de se retirar a parte não contributiva. Explico: as pensões mínimas têm uma bonificação. Por exemplo, em muitas pensões mínimas de €250, a parte contributiva corresponde apenas a 50 ou 100 euros. Depois, há um complemento social que é dado para se atingir a pensão mínima. Quanto pesa este complemento? Um total de 22,5% das despesas com pensões, ou seja, 3,3 mil milhões de euros. Quando se diz que as pensões do regime contributivo custam €13 mil milhões, tem de se ter em conta que mais de €3 mil milhões correspondem a parte não contributiva, parte essa que é financiada por transferências do Orçamento do Estado e não pela TSU.
Então concluímos que a TSU, afinal, chegar para pagar as pensões…
Pois claro que chega. O sistema previdencial foi sempre superavitário. Só nos últimos dois anos é que tem tido um ligeiro défice por causa do efeito devastador do desemprego, como é óbvio.
E para se fazer face a esse “ligeiro défice”, não se tem recorrido ao Fundo de Estabilização?
Nem um tostão. O que acontece é que 2 a 4 pontos percentuais da TSU dos trabalhadores deve ser transferida para o Fundo de Estabilização. Nos últimos dois anos, por causa da crise, essa transferência não tem sido feita. Ou seja, o Fundo não tem pago nada, só não tem recebido o que devia receber.
As contribuições da TSU andarão à volta dos 14 mil milhões de euros…
… Sim…
E quanto é que o Estado transfere para a Segurança Social?
O Estado transfere €7 mil milhões para os regimes não contributivos (Rendimento Social de Inserção; ação social das IPSS; Complemento Solidário de Idosos, etc.).
Menos do que aquilo que gasta com a Saúde ou com os juros da dívida pública…
Pois claro. Porque a parte mais importante, a do regime previdencial, tem uma receita própria, que é a TSU.
E, afinal, qual é o valor do défice?
Está aqui [e aponta para a conta da SS]. Transferência do Orçamento do Estado para o sistema previdencial: 150 milhões de euros. E estamos com este desemprego! Mas o que é que são €150 milhões num orçamento de 20 e tal mil milhões de euros?
Então porque falou a ministra das Finanças em €600 milhões?
Não percebo porque é que os €600 milhões têm de ser pagos pela SS e porque é que os pensionistas estão sempre em primeiro lugar nos cortes. É um disparate analisar isto como um problema a curto prazo. Aliás, revela que há insensibilidade de alguns membros do Governo, porque não se pode lançar uma ideia dessas sobre pessoas que já não têm possibilidade de reverter a sua vida, que já têm idades avançadas, algumas doentes, dizendo ‘temos de cortar €600 milhões num determinado ano’ e não dizendo como. É gélido do ponto de vista humanístico.
Concorda com o uso do dinheiro do Fundo de Estabilização para compra de dívida pública?
Assim como discordei da determinação do Ministério das Finanças deste Governo, para que o fundo pudesse adquirir até 90% dos seus ativos em dívida soberana – o que acho uma intromissão inadmissível, que colide com o princípio fundamental em qualquer gestão de ativos, que é o da diversificação do risco -, discordo agora desta coisa disparatada do PS de aproveitar 10% do Fundo, ou seja, 1,4 milhões de euros, para a reabilitação urbana. O Fundo não é do Estado; é dos pensionistas e dos futuros pensionistas. Isto é a política a entrar em domínios onde não deve entrar.
Que reformas vamos ter no futuro?
Temos de dizer aos jovens, com honestidade, que as suas condições de reforma tendem a ser inferiores às que hoje existem, mas que também não devem colocar os ovos todos no mesmo cesto.
Está a falar do plafonamento. Ainda o defende?
Sim, sou a favor do plafonamento acima de um determinado nível de rendimento. Não tanto por uma questão de equilíbrio do sistema, mas por uma questão ideológica, filosófica, doutrinária; acho que o Estado não deveria preocupar-se com as pessoas a partir de um determinado rendimento. Há contradições em alguns políticos quando dizem que temos de penalizar as pensões douradas e são contra o plafonamento ao mesmo tempo. Havendo plafonamento não há pensões altas.
A existência do plafonamento não vai esvaziar a Segurança Social?
Não. O plafonamento, no início, significa menos receita. Quando as pessoas chegam à reforma, significa menos despesa. Com vantagem para o Estado: o que ganha em pensão, acima de determinado valor, é superior ao que perde em receita.
São necessárias verbas para aguentar o entretanto…
Não é o momento oportuno para lançar qualquer plafonamento. Seja o horizontal, seja esta nova proposta do PS, de reduzir a TSU dos trabalhadores. Um momento de crise não é o melhor.
Como vê as propostas do PS e da coligação de Governo?
Aquilo que conhecemos do programa do PS é uma folha de cálculo, um excel, e aquilo que conhecemos das medidas programáticas da coligação é em word. O word são intenções ainda muito pouco definidas e o excel é uma esperança notável do crescimento da economia por milagre. Acho um exagero dizer que os trabalhadores vão consumir mais e, portanto, fazer crescer a economia, porque pagam menos TSU. Porque quando uma pessoa tem mais 1 ou 2% de ordenado liquido, tem três hipóteses: ou consome, ou poupa ou paga dívidas. Depois, está a dar-se um argumento brutal aos empresários para não aumentarem os salários. De resto, é ‘fezada’ na economia, acho lírico.
Baixar a TSU é descapitalizar a previdência?
A Segurança Social caminha a passos largos para a insustentabilidade, dizem, e depois vão aproveitar para fazer política com as receitas da TSU. Todos querem aproveitar o sistema, mas querem o quê? Os ossos? ?O esqueleto? Ou o fillet mignon?
As contas de Bagão
- €14 mil milhões – As contribuições da Taxa Social Única
- €13 mil milhões – A despesa com pensões do regime contributivo
- €3,3 mil milhões – O valor que deve ser descontado à despesa com pensões do regime contributivo, por representar uma parte social, não contributiva, das pensões mínimas
- €14 mil milhões – O valor dos ativos do Fundo de Estabilização
- €7,8 mil milhões – O peso que a taxa de desemprego tem tido nas contas da SS
- €150 milhões – O défice do regime previdencial