Lisboa, 23-30 de Maio de 2013
«Avós, Pais e Netos»
Carta aberta a Henrique Raposo
Senhor (talvez) futuro avô
Já é a segunda vez que, nas suas crónicas, o senhor trata — quanto a mim destrata, mas já lá iremos — o assunto dos aposentados e dos reformados (presumo que quando, fala destes, está também a pensar naqueles, entre os quais me incluo). E, como não há duas sem três, presumo também que, um dia destes, voltará ao assunto. E isso faz-me ranger os dentes. Explico-me.
O senhor tem um leitorado cativo, de milhares de pessoas (cem mil ?), tantas quantas comprarão o «Expresso», e é pago para exprimir as suas opiniões. É, em suma, um sortudo. Não posso, por isso, competir consigo nesse terreno, mesmo que esta minha carta aberta venha a ser publicada no blogue da Associação APRe! Digo, mais concretamente, não tenho os meios necessários para fazer conhecer ao leitores do «Expresso» a minha opinião sobre as ideias que o senhor expendeu em duas das suas crónicas. Mas posso fazer uma coisa: garantir-lhe que, por mim, escusa de voltar ao assunto para repetir o que já disse por duas vezes. Aquilo a que aludiu na sua crónica «Contrato entre avós, pais e netos» (Expresso. 18.05.13) e numa outra anterior versando o mesmo assunto, que não guardei e cujo título já esqueci, não tem qualquer sustentação factual. Vou explicar-lhe, pro bono, as razões e espero que me leia até ao fim, como eu o leio a si todas as semanas.
1. «Nós temos de criar filhos, pagar a sua pensão [isto é, a minha. JMCS] e poupar à parte para a nossa reforma».
Contesto a parte sublinhada, por mim, desta sua afirmação. Fique a saber o seguinte:
1.1. O senhor NÃO tem o dever (legal ou moral) de contribuir para pagar, mesmo que seja em parte infinitesimal, a minha pensão de aposentação. A minha pensão de aposentação foi paga por mim, ao longo de 36 anos, com os descontos mensais que fiz para esse efeito como funcionário público, de acordo com as leis em vigor (trabalhei mais 2 anos em França, antes do 25 de Abril de 1974, mas, nessa altura, era demasiado jovem e ignorante para me preocupar com os descontos efetuados e que lá ficaram). Dito de outra forma: a minha pensão de aposentação é a parte do meu salário que anuí colocar, todos os meses, à disposição da Caixa Geral de Aposentações (um organismo do Estado português) com a condição de que me fosse restituída quando me aposentasse, também em prestações mensais. E, como descontei 14 meses durante 36 anos, são 14 as pensões a que anualmente tenho direito (artigo 17º do decreto-lei nº 496/80, decreto-lei nº30-C/92 e artigo 70º, nº3, da lei nº12-A/2008). Tecnicamente, isto chama-se «salário diferido». Sempre que falar em pensões de aposentação ou de reforma, tenha, pois, em mente que estas pensões (as dos chamados regimes contributivos) são um dos membros de uma equação fácil de memorizar: montante de uma pensão de aposentação ou de reforma = montante do salário diferido durante N anos de vida activa e contributiva do aposentado ou reformado.
1.3. A minha anuência a este contrato foi conseguida mediante solenes garantias e contratos legais (é assim que as coisas se fazem num Estado de direito democrático em que há cidadãos, não súbditos), entre outros os decretos-leis e a lei a que fiz menção no ponto anterior e, de uma forma mais geral, a lei de bases da segurança social, lei nº4/2007, de 16 de Janeiro. Recomendo-lhe a sua leitura atenta, se quiser continuar a opinar em público sobre o contrato entre avós, pais e netos. O senhor não teria de ler esta carta se o tivesse feito devidamente. No artigo 23º da lei 4/2007 (composição do sistema) lê-se:
O sistema de segurança social abrange o sistema de protecção social de cidadania, o sistema previdencial e o sistema complementar.
Leia agora o artigo 54º (princípio da contributividade) da mesma lei que diz respeito, em exclusivo, ao sistema previdencial, a componente que paga, nomeadamente, as pensões de aposentação e de reforma e os subsídios de desemprego e doença aos trabalhadores.
O sistema previdencial deve ser fundamentalmente autofinanciado, tendo por base uma relação sinalagmática directa entre a obrigação legal de contribuir e o direito às prestações.
1.4. «Autofinanciado» quer dizer, obviamente, que o sistema previdencial é financiado APENAS pelas quotizações dos trabalhadores por conta de outrem e dos trabalhadores independentes, assim como pelas contribuições das entidades empregadoras. Essas quotizações e contribuições são fixadas actuarialmente, em função do custo de protecção das eventualidades previstas (artigo 57º, ponto 3, da lei nº4/2007), e têm por única fonte o salário ou vencimento do trabalhador, mesmo naquela parte que é paga pela entidade empregadora. Não caem do céu, nem vêm do FMI, da Comissão Europeia ou do Banco Central Europeu. Também não vêm do dinheiro dos impostos (IRS, IVA, IMI, etc) que os cidadãos portugueses (incluindo os aposentados e reformados) pagam. É por isso que o artigo 90º(2) (formas de financiamento) reitera o que diz o artigo 54º: todas as prestações do regime previdencial (pensões de aposentação ou de reforma, subsídios de desemprego e de doença, acções de formação profissional, etc) são pagas pelas quotizações dos trabalhadores e pelas contribuições das entidades empregadoras (privadas ou públicas).
«Relação sinalagmática» não tem um sentido óbvio, porque o segundo termo foi pedido de empréstimo ao grego (sunallagmatikós). Mas qualquer bom dicionário informará quem quiser ser informado que significa uma relação contratual que liga, mutuamente, dois contraentes, neste caso o Estado e o trabalhador inscrito no sistema previdencial. Essa relação sinalagmática é regida por princípios jurídicos claramente enunciados no artigo 5º (princípios gerais).
Constituem princípios gerais do sistema o princípio da universalidade, da igualdade, da solidariedade, da equidade social, da diferenciação positiva, da subsidiariedade, da inserção social, da coesão intergeracional, do primado da responsabilidade pública, da complementaridade, da unidade, da descentralização, da participação, da eficácia, da tutela dos direitos adquiridos e dos direitos em formação, da garantia judiciária e da informação. [os sublinhados a itálico são meus]
1.5. A minha pensão de aposentação NÃO é, pois, uma benesse que os governos pretéritos, ou o actual governo, tenham decidido conceder à minha pessoa e à pessoa de todos quantos estão em situação semelhante à minha. É um direito legalmente adquirido pelo (meu/nosso) trabalho e respectivos descontos.
1.6. Ficamos, pois, entendidos: o senhor NÃO paga a minha pensão de aposentação nem a pensão de aposentação ou de reforma de todos os demais aposentados e reformados. Se o senhor continuar a afirmar o contrário em crónicas futuras, estará conscientemente a propalar uma falsidade, ou seja, em bom português, a mentir com quantos dentes tem na boca. Espero que isso não aconteça, pois presumo que o senhor seja uma pessoa honesta, embora muito mal informada. Mas se tal acontecer é porque o meu pressuposto estava errado. Tratarei, nessa eventualidade, de denunciar tal falsidade, pese embora os parcos meios ao meu dispor.
1.7. Quer isto, então, dizer que o senhor está isento de qualquer responsabilidade pecuniária para com as pessoas mais velhas que já não trabalham? Não. Pelas leis em vigor, incluindo a lei 4/2007, o sistema de segurança social tem outra importante componente: o subsistema de protecção social de cidadania. Este sistema é financiado pelas receitas fiscais consignadas no Orçamento de Estado. Quer isto dizer que é com o dinheiro dos impostos — os impostos que o senhor paga, que eu pago (porque todos os aposentados e reformados em situação semelhante à minha continuam a pagar IRS, como saberá) e todos quantos tenham rendimentos suficientes — que são pagas, entre outras coisas, pensões de velhice, invalidez ou sobrevivência a muitas pessoas que delas carecem para sobreviver, embora nunca tenham contribuído, ou com pouco o tenham feito, com descontos dos seus rendimentos para esse efeito específico. Dou-lhe um exemplo, para fixar as ideias. A minha sogra era uma dessas pessoas. Perdeu tudo o que tinha em Angola para onde emigrara na sua juventude com o meu sogro e onde fizeram toda a sua vida activa como comerciantes por conta própria. Nos últimos anos da sua vida recebeu uma pensão de 240 euros, salvo erro. Morreu num estado avançado da doença de Parkinson em que não já não conseguia sequer andar.
Esse é o ÚNICO dever (legal) de solidariedade entre gerações que o senhor e todos aqueles que estão no activo têm para com os chamados pensionistas. Não para com todos os pensionistas, longe disso, mas apenas para com aqueles que são beneficiários de pensões dos chamados regimes não contributivos ou, como diz a lei 4/2007, do sistema de protecção social de cidadania. É o preço (módico) que temos de pagar se quisermos viver num país civilizado e não num parecido, por exemplo, com o Bangladesh de hoje. Mas, relembro-lhe, esse dever de solidariedade para com essa camada de pensionistas não é um exclusivo das pessoas actualmente no activo, nem, por conseguinte, um dever exclusivamente intergeracional. É também um dever de solidariedade intrageracional. A prova disso é o IRS que pago sobre a minha pensão de aposentação.
2. «Meu caro reformado, julgo que já deve ter percebido que precisamos de um novo contrato entre gerações, porque aquele que está em vigor não é bem um contrato, é uma galé de condenados. E o seu neto até está sentado na cadeira mais funda do porão, o seu neto é o condenadíssimo».
Estou de acordo consigo. É uma das duas coisas em que concordamos — a outra será mencionada no ponto 5.2.B. Precisamos de um novo contrato entre gerações, mas não é com certeza pelas razões que alega. Os seus netos não estão condenados às galés, a não ser que acreditem em si. Pagarão, sim, para a aposentação deles próprios e, quando muito (e se assim for, acho bem que o façam), para uma pensão de invalidez do seu avô, se o senhor tiver a má sorte de sofrer um acidente ou de uma doença degenerativa grave que o incapacite prematuramente de trabalhar. Para mim, o novo contrato a estabelecer entre as gerações só valerá a pena se puser o sistema previdencial sob o escrutínio e a fiscalização directa dos seus únicos financiadores — os trabalhadores, que são a maioria, e as suas entidades empregadoras, que são a minoria — e o autonomize para o colocar ao abrigo das razias de governos de aventureiros sem escrúpulos (veremos adiante, concretamente, alguns exemplos dessas razias).
3. «”Mas o dinheiro que recebo é meu, eu descontei, não preciso do vosso dinheiro”, diz o meu caro amigo numa resposta típica. Lamento, mas não é assim».
Bem, este seu «caro amigo» não lamenta repeti-lo, se servir para alguma coisa: “Sim. O dinheiro da minha pensão de aposentação é meu. Foi acumulado com o meu suor, não com o seu. Guarde o seu óbolo e as suas palmadinhas no ombro para as patuscadas com os seus amigos do clube das repúblicas mortas”. Releia os pontos anteriores, se os não entendeu à primeira, e leia os pontos seguintes. Ficará a saber por que razão obtém esta resposta típica às suas alegações. Entretanto, posso garantir-lhe que a única coisa em que o senhor contribuiu, até agora, para a minha vida de aposentado foi impor-me o dever de ter de escrever, a contragosto, esta carta, em prejuízo de tantas coisas interessantes que tenho para fazer.
4. «Na ausência de pirâmide demográfica, o meu caro amigo não pode ignorar que só existem 4,6 milhões de trabalhadores para suportar 3 milhões de reformados».
4.1. Não e não. As suas estatísticas estão erradas e a relação que estabelece entre elas é falsa. Mas comecemos pelo primeiro «não». Existiam, no fim de 2012, 5,5 milhões de trabalhadores, dos quais 930.000 estavam desempregados. E, como já não trabalham, deixaram de receber salários. Lamentável, insustentável ? Não para alguns. Segundo a opinião do sr. António Borges (ex-director da Goldman Sachs, ex-director do FMI, actual conselheiro do governo para a área das privatizações, das parcerias público-privadas e das empresas públicas): “diminuir salários não é uma política é uma urgência, uma emergência” (Jornal de Notícias. 01-06-12). E que mais radical diminuição de salário (cujo valor médio é de 806 euros) haverá que a do “salário zero”, a nova invenção do secretário de Estado Helder Rosalino para os trabalhadores da função pública que não forem recolocados ao fim de 18 meses de “mobilidade especial”? Infelizmente, o salário que o conselheiro Borges recebe é segredo de Estado. O governo não divulga essa informação. Mas podemos deitar-nos a adivinhar: se o senhor Borges ganhou, em 2011, 306.000 dólares livres de impostos (Correio da Manhã. 3-07-12), não haverá segredo nenhum. Haverá, sim, modéstia: o sr. Borges não quer que se saiba que fez um preço especial ao Estado português, alguns cêntimos abaixo do que costuma cobrar pelos seus conselhos.
Voltemos pois, mais descansados, aos 930.000 desempregados que, entretanto, já passaram a mais de 952.000 (1º trimestre de 2013). Como não trabalham, deixaram de descontar para a Segurança Social e mais de metade deles não recebe subsídio de desemprego. Lamentável? Horrível? Não para alguns. Na opinião do sr. Daniel Bessa (economista, ex-ministro, admnistrador e consultor de várias empresas, presidente da associação empresarial COTEC), entre todas as funções do Estado, “o problema maior de todos é o da Segurança Social” que “está prisioneira de pagar aos velhos aquilo que lhe for levado pelos novos”. “Essa é a situação mais difícil de todas”, sustentou, para quem Portugal estará “desgraçado” se “transportar para dentro do Orçamento de Estado este problema” (Lusa. 21-05-13). Depois de ter lido estas declarações, fui ver que idade tinha este homem. Tem 65 anos (pt. wikipedia.org). Faz parte, tecnicamente, daqueles a quem chama carcereiros e parasitas dos “novos”. Tentei esquecer estas declarações. Mas uma noite destas tive um pesadelo.
“Veja só o que aconteceria — dizia o sr. Daniel Bessa ao sr. Passos Coelho — “se o Orçamento de Estado tivesse agora de arcar com as despesas de subsídio de desemprego de quase 1 milhão de desempregados. Todo o seu esforço para se apoderar dos fundos de pensões dos velhos, seria em vão!” “Tem toda a razão, meu caro Bessa — respondia Passos Coelho — É por isso que eu não me canso de dizer que de nada serve a indignação fácil, de que não têm culpa, que querem trabalhar. Se foram despedidos, é porque viviam acima das suas possibilidades, ou acima das possibilidades dos seus ex-empregadores. Se querem trabalhar, emigrem!”. E Bessa a retorquir, aquiescente: ” Bem dito. Se se esforçarem, poderão até voltar milionários um dia destes e investir as suas poupanças no terrunho natal. Quem sabe mesmo se algum não virá a ser membro da COTEC”. Foi nesta parte que acordei, com suores frios.
Registo que as opiniões de Daniel Bessa e as de Mira Amaral (que citarei mais adiante) são coincidentes com a sua. Assim sendo, julgo perceber a razão pela qual o senhor trata com tanta aparente displicência as estatísticas. O senhor parece acreditar que a derrocada da Segurança Social será causada por milhões de velhos com reformas «exorbitantes» (voltarei a este assunto no ponto 5.3.1 e seguintes), não pela política de terra queimada de demagogos e aventureiros sem escrúpulos.
4.2. Vamos ao segundo «não». De novo, os seus números estão errados.
Existiam, em 2012, 3,5 mihões (e não, como diz, 3 milhões) de pensionistas (e não, como diz, de “reformados”). Para termos 3,5 milhões de reformados teríamos de ter militares e polícias com efectivos semelhantes aos dos Estados Unidos. Reformados é o nome que a lei reserva aos militares e equiparados (polícias, GNR) que deixaram de estar no activo (ou na reserva) por terem acumulado um certo número de anos de serviço e uma certa idade. Aposentados é o nome que a lei reserva aos trabalhadores civis cumpridas essas duas condições.
Existiam, em 2012, 3,5 mihões (e não, como diz, 3 milhões) de pensionistas (e não, como diz, de “reformados”). Para termos 3,5 milhões de reformados teríamos de ter militares e polícias com efectivos semelhantes aos dos Estados Unidos. Reformados é o nome que a lei reserva aos militares e equiparados (polícias, GNR) que deixaram de estar no activo (ou na reserva) por terem acumulado um certo número de anos de serviço e uma certa idade. Aposentados é o nome que a lei reserva aos trabalhadores civis cumpridas essas duas condições.
4.3. Estas pessoas, aposentados e reformados, não são “suportadas” pelos trabalhadores no activo. Isto nada tem a ver com a demografia (voltarei a este ponto mais adiante). Tem tudo a ver, isso sim, com a origem e a formação das pensões que estas pessoas auferem. As pensões dos aposentados e reformados têm uma base contributiva assente na idade, no período contributivo e no valor das remunerações que serviram de base aos descontos que efectuaram durante a sua vida activa.
4.4. Não estou a falar, note bem, nas subvenções vitalícias mensais dos políticos (ex-Presidentes da República, ex-Presidentes da Assembleia da República, ex-primeiros ministros, ex-membros do governo, ex-deputados, ex-juízes do Tribunal Constitucional que não sejam magistrados de carreira) que não têm base contributiva. Estas subvenções são cumuláveis com a pensão de aposentação ou de reforma a que eventualmente tenham direito, o que na prática lhes dá direito a duas pensões, uma das quais paga, integralmente, com o dinheiro dos impostos de todos os contribuintes. Estas subvenções vitalícias eram tão escandalosas que a lei que as concedia (datada de 1985) foi revogada em 2005. Mas continuam a auferi-las os que as adquiriram antes dessa data (mais de 400 pessoas). A despesa da Caixa Geral de Aposentações com estas subvenções era de 8,8 milhões de euros anuais, em 2010 (Correio da Manhã, 12-02-10). Por exemplo, a actual presidente da Assembleia da República, Assunção Esteves, aufere uma subvenção vitalícia de 7.225 euros mensais por 10 anos de trabalho no Tribunal Constitucional, onde entrou com 32 anos e saíu com 42. Para se avaliar o que isto significa, importa saber que esta senhora optou por manter este estipêndio em vez do salário que corresponde às suas actuais funções: 5.219 euros. Manteve «apenas» as ajudas de custo que lhe estão adstritas: 2.133 euros (Sol, 20-11-11)
4.5. Também não estou a falar do regime especial de aposentação para os autarcas que lhes permitia contarem a dobrar os anos de serviço para efeitos de aposentação, a partir do sexto ano de mandato, e também aposentarem-se com 30 anos de descontos, independentemente da idade. Este regime, também foi revogado em 2005, pelas mesmas razões, mas isso não incomoda muitos dos autarcas que já estavam em tal situação, nessa data. Em 2005, foram 12 os ex-presidentes de Câmara que correram a “reformar-se” ao abrigo deste regime, entre os quais os mais conhecidos são Pedro Santana Lopes, na altura com 49 anos (3.178 euros de pensão) — que também recebe uma subvenção vitalícia como ex-deputado (Correio da Manhã, 10-02-10) — e Narciso Miranda, na altura com 56 anos (3.273 euros) (http://aeda.blogs.sapo.pt). E este ano já se “reformaram” mais dois nas mesmas condições: a presidente da Câmara de Palmela, com 47 anos de idade, e o presidente da câmara de Loulé, com 58 anos (Lusa, 11-01-13).
4.6. Também não estou a falar das “pensões douradas” dos admnistradores do Banco de Portugal, da Caixa Geral de Depósitos (CGD) e de outras instituições financeiras como o Banif (banco intervencionado pelo Estado) e de instituições comunitárias. Estas “pensões” nada tem a ver com pensões de velhice, aposentação ou reforma. São prémios vitalícios que os seus beneficiários a si próprios se atribuíram para garantirem continuar a receber proventos avultados, a partir do dia em que decidem abandonar essas instituições. É o caso, por exemplo, do sr. Armando Vara (ex-deputado, ex-ministro, ex-admnistrador da CGD), da sra. Celeste Cardona (idem aspas aspas), do sr. Miguel Beleza (ex-governador do Banco de Portugal, ex-ministro), do sr. Luís Campos e Cunha (ex-vice-governador do Banco de Portugal, ex-ministro). Este último, por exemplo, tem uma pensão de 8.000 euros mensais pelos 6 anos que passou no Banco de Portugal (Correio da Manhã, 25-01-06).
4.7. Também não estou a falar das pensões de aposentação que são pagas a pessoas, no activo, com ordenados principescos. Muito gostaria eu de saber (e não serei o único) que descontos fez, por exemplo, o senhor Eduardo Catroga (ex-gestor, ex-ministro, ex-representante plenipotenciário de Passos Coelho na negociação do memorando da troika, actual Presidente do Conselho Geral da EDP) para poder receber, desde 2007, uma pensão de 9.693 euros mensais da Caixa Geral de Aposentações, quando, segundo declarou, tem uma carreira de 40 anos como funcionário privado e, em paralelo, uma carreira de 20 anos como funcionário público (Correio da Manhã, 20-05-07). Como se explica que seja a Caixa Geral de Aposentações (de que são beneficiários apenas os trabalhadores da função pública) para onde terá descontado 20 anos, a pagar-lhe uma «pensão unificada» desse valor, se descontou o dobro desse tempo para a Caixa Nacional de Pensões (de que são beneficiários apenas os trabalhadores do sector privado) ? Mistérios, pelo menos para mim. Uma coisa é certa: este senhor, autor não apócrifo do memorando que comanda a actual política governamental de «austeridade», não sofre os efeitos da política que ajudou a gizar. Além da pensão já referida, aufere também um salário de 45.000 euros como presidente da EDP, agora propriedade da República Popular da China, e usufrui de um Plano Poupança Reforma correspondente a 10% da sua remuneração (Dinheiro Vivo,10-01-12).
4.8. Também não estou a falar, evidentemente, das pensões sociais (invalidez, velhice e sobrevivência). Essas pensões, aliás muito baixas (v. ponto 5.3.4), inserem-se no sistema de protecção social de cidadania a que já me referi no ponto 1.7.
4.9. Não sei quantificar com exactidão as situações 4.4, 4.5, 4.6 e 4.7 por falta de dados estatísticos fidedignos. Por exemplo, a Comissão Nacional de Protecção de Dados, cujo presidente é eleito pelos deputados, considera que “a pensão vitalícia não é uma informação pública”. Quanto às demais situações mencionadas (4.3 e 4.8), parto do princípio, com base nos dados disponíveis, que a situação actual é a seguinte:
Nº de pensionistas da Segurança Social: 2.981.635 em 2012, assim repartidos: A) Regime não contributivo. Complemento solidário de idosos: 244.997 (valor médio: 109 euros). B) Regime parcialmente contributivo. (B.1) Pensões de sobrevivência: 713.340. (B.2) Pensões de invalidez: 277.113. C) Regime contributivo. Pensões de velhice: 1.746.194. Nº de pensionistas da Caixa Geral de Aposentações (ex-funcionários públicos civis, ex-militares e equiparados): 603.267 em 2012. Regime contributivo: quase todos (i.e. exceptuando as situações referidas em 4.4, 4.5, 4.6 e 4.7).
Como vê, a sua afirmação é um borrão, não um retrato da situação sobre a qual pretendeu opinar. E, com isto, chego aos seus argumentos mais engenhosos, aqueles em que singelas verdades vivem paredes meias com troglodíticas falsidades. Classificarei tais argumentos com letras maiúsculas: A, B, C e D, para facilitar as referências que lhes farei no que se segue.
5. A) «Os seus descontos não ficaram lá à espera numa conta individual. Deviam ter ficado, mas não ficaram»; B) «porque os reformados também foram enganados»; C) Assim, «em teoria, o dinheiro dado à segurança social é um boomerang: ele vai mas volta. Porém, meu caro amigo, a teoria do boomerang só vai funcionar no seu caso. A minha geração não tem um boomerang, tem um conjunto de balas perdidas, vamos despejar uma metralhadora e não vamos reencontrar uma única bala». D) Por isso, «os cortes nas reformas são mais do que necessários, são a única forma de repor a justiça».
5.1. A) As contas individuais já existem na segurança social. Chamam-se «certificados de reforma» e inserem-se no chamado sistema complementar, a terceira componente do modelo actual de Segurança Social. É a componente que deveria ser, quanto a mim, suprimida, visto ser um negócio bancário como outro qualquer, nada tendo a ver com os princípios da solidariedade e da universalidade. Mas é ingenuidade sua supor que a conta individual lhe garantiria a sua pensão de aposentação. Nada menos certo. Ficaria mais vulnerável, porque sozinho, à frente do seu gestor de conta. As contas individuais de reforma formam gigantescos fundos que investem muitas vezes nas águas turvas em que navegam os Robert Freeman, os Rajat Gupta, os Fabrice Tourre e outros Goldman Sachs deste mundo. Uma derrocada como a do “subprime”, seguida pela falência em série de N bancos, e lá se vão as suas poupanças, “com uma grande pedido de desculpas” do seu gestor de conta. Mas não pretendo convencê-lo. Se acredita mais na mão invisível do mercado do que na mão (mais visível, apesar de tudo, do Estado), pois entregue-lhe as suas poupanças e reze para que ela se torne visível quatro décadas depois.
5.1.2. Não dê, porém, por ponto assente que o nosso sistema previdencial é um sistema de repartição pura. Não é verdade. É um sistema misto, de repartição e de capitalização (artigo 8º, alínea C da lei nº4/2007), não de capitalização individual como os certificados de reforma, mas de capitalização colectiva. Sim, ao contrário do que julga, ou em que nos quer fazer acreditar, o dinheiro das quotizações que paga todos os meses (e que eu paguei durante 36 anos), para a sua pensão de aposentação, não entra por um lado para sair logo a seguir por outro, sob a forma de uma pensão a quem já está aposentado. Não é assim que as coisas se passam. Uma parte importante das quotizações fica a render em depósitos a prazo e outra, não menos importante, é investida em aplicações financeiras (títulos do tesouro, por exemplo), para criar uma almofada financeira que permita acautelar o pagamento de pensões por um período mínimo de dois anos. É essa a missão do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS). Este fundo é gerido pelo Instituto de Gestão dos Fundos de Capitalização da Segurança Social (IGFCSS) — capitalização, repare bem.
5.1.3. O senhor ignora, mas fica agora a saber, o seguinte: o IGFCSS contava, no final de 2011, com 8.872,4 milhões de euros de activos — sim, leu bem, são esses milhões todos, o equivalente a 5,2% do PIB. Este dinheiro pertence aos actuais e futuros aposentados e reformados. Pois bem, para diminuir o rácio da dívida pública (127,3% do PIB em Março deste ano, correspondente a 210.000 milhões de euros), o sr. Vítor Gaspar, ministro das finanças, e o sr. Mota Soares, ministro da Segurança Social, preparam-se para obrigar este Instituto a vender os títulos de dívida pública de outros Estados que o FEFSS detém (27% do total de activos do Fundo, cerca 3000 milhões se euros) para comprar títulos da dívida pública portuguesa. A ideia é obrigar o FEFSS a investir até 90% do total dos seus activos em títulos de dívida pública portuguesa (actualmente essa percentagem é de 57%). (Diário Económico,21-05-13; Público, 30-05-13). O governo pretende, assim, transferir uma parte da dívida pública para os aposentados e reformados. Amanhã, se for preciso, declarará que não tem meios para remunerar esses títulos, «dada a grave situação do país» que ele próprio criou com a sua política de recessão e de empobrecimento da população trabalhadora. (Lembro-lhe que a dívida pública não tem parado de aumentar desde que este governo entrou em funções. Era de 94% do PIB em Março de 2011, 120,3% do PIB em Setembro de 2012, passou a 123,6% em Dezembro de 2012 e, desde então, aumentou mais de 3.800 milhões de euros, 127,3% do PIB). São dezenas as pessoas que, como o senhor, opinam regularmente nos jornais. Quantas irão fazer soar o alarme sobre esta perigosa manobra em preparação?
5.1.4. E fique, também, a saber o seguinte. Mesmo com um crescimento económico anémico e com a dívida do Estado (11,7 milhões de euros) ao seu sistema previdencial (porque o Estado é também empregador), a Segurança Social apresentava saldos positivos elevados até 2009. O que está a pôr em perigo o sistema previdencial — um perigo muito grave, agora acrescido com a manobra, em preparação, que descrevi — não é a demografia, mas o aumento do desemprego, que arrasta consigo a quebra brutal nas quotizações e o aumento enorme nas despesas com subsídios de desemprego. E o principal factor, para o aumento galopante do desemprego, é a política recessiva do governo e da troika que o governa. Bem gerido, sob o controlo apertado dos seus financiadores e beneficiários e com uma política governamental que favoreça o crescimento do emprego, em vez da sua destruição, o sistema previdencial nunca pode entrar em falência, mesmo com uma demografia desfavorável como a actual (que também não é uma fatalidade; pode ser revertida com políticas de apoio à natalidade).
5.1.5. Talvez, agora, perceba a razão pela qual um sistema previdencial deste tipo, misto, não é apenas, socialmente, mais justo e solidário do que o sistema complementar das contas individuais, mas é, também, um sistema que comporta menos riscos e é mais protector dos direitos individuais. A razão reside no facto de o Estado (não os governos que são transitórios e podem ser constituídos por embusteiros e hunos engravatados) assumir, como lhe compete, a tutela dos direitos adquiridos (como os meus) e dos direitos em formação (como os seus).
5.1.6. Sim, eu sei: o sr. Mira Amaral (ex-deputado, ex-ministro, actual presidente do banco BIP) tem uma ideia diferente: «”As novas gerações deviam deixar de pagar para a Segurança Social. Isto é uma aldrabice”. Por isso, apelidou o sistema de contribuição para a Segurança Social de “esquema Ponzi”, dizendo que é idêntico às manobras usadas pela Dona Branca e pelo investidor norte-americano Madoff, que prometiam um determinado retorno e, depois, falhavam aos investidores. (Lusa, 15-11-2012). Mas não nos esqueçamos: este Catão doméstico é o mesmo homem que, desde 2005 (tinha então 59 anos), recebe uma pensão de “reforma” de 18.000 euros mensais da Caixa Geral de Aposentações por ter sido administrador da Caixa Geral de Depósitos durante 18 meses (TSF, 28-10-04).
5.2. B) Os deputados, ministros e secretários de Estados dos partidos actuais no governo são, é verdade, mentirosos profissionais (excluo, naturalmente, desta classificação os membros “independentes” do governo que não se apresentaram a eleições e que, por conseguinte, não tiveram de mentir para chegarem às posições que ocupam; bastou-lhes serem cooptados pelos mentirosos). O meu vídeo favorito no Youtube é uma compilação das promessas de Passos Coelho, durante a campanha eleitoral, garantindo que não aumentaria os impostos sobre o trabalho nem o IVA e que não cortaria salários e pensões nem “subsídios” de férias e de Natal. A uma garota que o interpela sobre este último ponto, chega mesmo a dizer, com um ar compungido: «Isso é um disparate, está bem?» e repete, «um disparate!». (Se não conhece este vídeo, posso enviar-lhe as coordenadas).
Dêmos, pois, de barato que lhes foi possível, com estas falinhas mansas, enganar gente suficiente para conseguirem chegar ao governo, incluindo no rol muitos aposentados e reformados. Mas não se consegue enganar toda a gente todo o tempo (pelo menos em democracia). Levou menos de um ano (lembra-se da manifestação contra a transferência da TSU dos empresários para os trabalhadores?) para que os enganados ficassem a conhecer a extraordinária desfaçatez e o verdadeiro rosto dos embusteiros.
5.3. C) A «teoria do boomerang» não é uma teoria do sr. A ou B. É uma lei da Assembleia da República, a lei de bases da segurança social que já citei no ponto 1.3. É 3,5 milhões de vezes mais temível que a sua metralhadora. Pode derrubar governos (o ministro Paulo Portas sabe disso) e derrubará, se for preciso, porque é uma lei justa. Releia o artigo 5º dessa lei que citei no ponto 1.3 desta carta, sobretudo as partes que sublinhei: o primado da responsabilidade pública, a tutela dos direitos adquiridos e dos direitos em formação. Não são palavras ao vento: são os princípios que protegem o direito que tenho de receber a minha pensão de aposentação e o direito que o senhor tem de receber a sua, quando chegar a sua hora. Sim, a sua geração tem mais do que um boomerang, tem uma panóplia de boomerangs que a minha geração construiu. Chama-se Estado de direito democrático. Tem muitos defeitos e carece de ser aperfeiçoado para que os cidadãos possam estar mais protegidos de políticos embusteiros, mas, mesmo assim, é o que nos diferencia da Angola do sr. Mira Amaral e da China do sr. Catroga onde o partido no poder pode tudo.
5.3.1. Que o senhor não reconheça as propriedades desses boomerangs ou que não tenha coragem para os manejar, é triste, mas é um facto que as pessoas da minha geração não têm outra opção senão aceitar. Faça, então, os seus certificados de reforma e que lhe façam bom proveito. Mas, por favor, pare de dizer barbaridades como «os cortes nas reformas são mais do que necessários, são a única forma de repor a justiça». Olhe para os quadros seguintes, relativos a 2012.
O primeiro quadro é o dos pensionistas de velhice do regime contributivo da Segurança Social (SS). O segundo quadro é o dos seus pares na Caixa Geral de Aposentações (CGA), os aposentados e reformados. Doravante, para poupar palavras, designarei todos, independentemente do seu vínculo, SS ou CGA, por aposentados e as pensões que recebem por pensões de aposentação.
5.3.2. Os valores da CGA são, em geral, superiores aos da SS. Isso é, geralmente, explicado pelos detractores do sistema previdencial como um resultado da fórmula de cálculo de pensões que seria mais favorável no caso daqueles do que destes. Mas essa explicação só colhe parcialmente. Desde 1993 (decreto-lei nº 286/93), portanto há 20 anos, o cálculo das pensões de aposentação dos beneficiários da CGA, inscritos depois dessa data, é igual e encontra-se equiparado ao dos beneficiários da Caixa Nacional de Pensões (SS).
As razões de fundo são outras. As pensões dos aposentados da CGA são mais elevadas porque: 1) estes descontam mais anos do que os seus pares da SS (em média mais 6); 2) são calculadas sobre salários mais elevados. E os salários são mais elevados porque os trabalhadores da função pública têm um nível médio de escolaridade muito superior aos do sector privado (p.ex. 56% dos trabalhadores na Administração Central — professores, médicos, enfermeiros, juízes, etc — são diplomados do ensino superior, enquanto no sector privado essa percentagem é inferior a 16%); 3) no sector privado, há frequentemente subdeclaração dos rendimentos, ou mesmo fuga aos descontos, o que baixa também o valor da pensão de aposentação.
5.3.4. Pelos quadros se pode ver o seguinte: A
— Segurança Social
Num total de 1.698.989 pessoas, 28,6 % recebiam pensões inferiores a 250 euros/mês, 49,6 % tinham pensões entre 250 e 500 euros/mês, 15,4% tinham pensões entre 500 e 1000 euros/mês e 5,4 % tinham pensões entre 1000 e 2500 euros/mês. Só 0,7% tinham pensões entre 2500 e 4000 euros/mês e só 0,3 % recebiam pensões superiores a 4000 euros/mês.
— CGA
Num total de 462.446 pessoas, 12,5% tinham pensões inferiores a 250 euros/mês, 8,4% tinham pensões entre 250 e 500 euros/mês, 15,3% tinham pensões entre 500 e 750 euros/mês, 13,2% tinham pensões entre 750 e 1000 euros/mês, 17,3% tinham pensões entre 1000 e 1500 euros, 9,9% tinham pensões entre 1500 e 2000 euros/mês, 11,5% tinham pensões entre 2000 e 2500 euros/mês, 8% tinham pensões entre 2500 e 3000 euros. Só 2,2% tinham pensões entre 3000 e 4000 euros/mês e só 1,2% tinham pensões superiores a 4000 euros.
A estes números, deve ser acrescentado um outro: os pensionistas de velhice e invalidez da Segurança Social, com pensões inferiores ao salário mínimo (487 euros), são 1.494.185 (79% do total deste grupo).
5.3.5. Estes valores são valores brutos. Não têm em linha de conta as duas pensões que o governo confiscou aos aposentados em 2012, apesar do Tribunal Constitucional (TC) as ter considerado inconstitucionais, mas sem o ter obrigado a restituí-las. Este ano o governo, atrevidamente, tentou confiscar 90% de uma pensão, contando com igual complacência do TC. Mas enganou-se. Desta vez a medida não passou. Mas passaram outras. A taxa de IRS aumentou muito este ano com a redução do número de escalões e com a sobretaxa de 4% que o governo introduziu neste imposto. Por exemplo, um aposentado com uma pensão de 1000 euros brutos ficará este ano com 654 euros líquidos depois de pagar o IRS (menos 34,6%); um aposentado com uma pensão bruta de 1400 euros ficará com 880 euros (menos 37,1 %); um aposentado com uma pensão bruta de 2250 euros ficará com 1291 euros (Correio da Manhã, 01-11-12). Estas contas valem, igualmente, para os assalariados. Mas os aposentados têm ainda de pagar a chamada Contribuição Extraordinária de Solidariedade (CES) que varia entre 3,5% e 10% , para as pensões entre 1350 euros e 3750 euros, e pode ir até 40% para a pequena minoria que aufere pensões superiores a 3750 euros.
5.3.6. As pensões, note bem, são a única categoria de rendimentos que suporta a CES, o que viola o princípio da igualdade. O Tribunal Constitucional (TC) deixou passar esta violação clamorosa da Constituição. O juíz presidente do TC afirmou que a CES não foi declarada inconstitucional, «embora reconhecendo que essa medida tem algo de anómalo, porque as contribuições para o sistema são feitas pelas contribuições no activo». “Algo de anómalo” é favor. A medida é totalmente anómala, além de iníqua. Prossegue o presidente do TC: «Há aqui uma sobrecarga, que recai sobre os reformados e aposentados». Então qual a justificação para a deixar passar? «Numa situação de emergência e de cariz excepcional foi entendido que, apesar de tudo e no limite, ainda era uma solução [comportável]» (Público, 06-03-13). Mas o governo desconhece o que é um limite, constitucional ou outro. O seu único limite é o céu — o céu da troika — que ninguém sabe onde termina, talvez seja no inferno. «Que se lixem as eleições!» (disse Passos Coelho). «Não fui eleito coisíssima nenhuma» (disse Vítor Gaspar). Por uma vez, disseram o que lhes vai nas entranhas. Por isso, o governo pretende agora tornar permanente a dita CES, cortar 10% no valor bruto das pensões da CGA e aumentar para o dobro (2,25% a partir de Julho e 2,5% a partir de 2014) os descontos para o sistema de saúde dos pensionistas da CGA com pensões acima de 485 euros mensais — um verdadeiro assalto à mão armada à camada mais vulnerável da sociedade, tanto em termos de procura de fontes alternativas de rendimento como de saúde.
5.3.7. E o senhor o que faz ? Vem a público aplaudir: «Bravo! Muito justo!».
Talvez seja, apenas, o resultado de ignorância, de desinformação e de uma boa dose de petulância.
Se, porém, depois de ter lido esta carta, ainda continuar a achar justas «as sevícias orçamentais de Gaspar e dos seus ajudantes contra o direito de propriedade, que, no fundo, constituem as pensões [dos aposentados e reformados]» (Bagão Félix, Público. 04-05-13), então terei de concluir que o senhor está no país errado. O Bangladesh, por exemplo, convinha-lhe mais. Lá, o regime que impera em matéria de Segurança Social é o que preconizam os Bessas e Miras do Amaral que nos couberam em sorte. Mas, se não decidir ir para lá viver, pare pelo menos de nos dar palmadinhas nas costas, pare de nos provocar.
José Manuel Catarino Soares
(Professor coordenador aposentado do ensino superior politécnico)
PS1. Os números citados no ponto 4.9 e nos pontos 5.3.1 e seguintes foram extraídos da PORDATA, www.pordata.pt. Nem sempre coincidem porque as realidades contabilizadas pela Pordata podem incluir ou excluir certos grupos de pensionistas, conforme o caso em apreço.
PS2. Eu suspeitava que não haveria duas sem três. Não me enganei. Não julgava é que fosse tão cedo. Na sua crónica «Passos, o Desesperançoso» (Expresso. 25-05-13), o senhor escreve: «Os cortes [nas pensões de aposentação] não são apenas necessários, são acima de tudo um ato de justiça, porque é necessário aliviar o esforço das gerações mais novas».
PS3. Já depois de ter escrito os dois PS anteriores, descobri que o senhor tem um blogue, «o clube das repúblicas mortas», onde opina sobre tudo e mais alguma coisa. (Modifiquei o início do ponto 3 desta carta de modo a incluir essa informação). E tem uma coluna no «Expresso on line» onde, também, opina abundantemente. Estive a ler alguns dos seus escritos relacionados com o tema das pensões de aposentação, que são muitos. Seria preciso ter um blogue de um tamanho igual ao seu e a paciência de um santo para ir rebatendo, taco a taco, tudo o que reputo de falso no que vai dizendo sobre este assunto. E não faria mais nada, mesmo que tivesse uma coisa e outra. Por isso, resisti à tentação de aumentar esta carta, já bem longa, ou de a reescrever. Convém acrescentar, no entanto, que a escrevi no pressuposto (errado) de que senhor desconhecia totalmente a natureza do nosso sistema previdencial. Mas, afinal, o senhor sabe, pelo menos, que é um sistema misto, de repartição e capitalização, o que, desde logo, deita por terra a boa fé da sua argumentação. A prova é o que escreveu em 26 de Maio de 2011, há exactamente dois anos portanto, no «Expresso on line»:
«Em Março, vários órgãos de comunicação social afirmaram que o Fundo de Estabilização da Segurança Social estava a comprar dívida pública portuguesa — quando já ninguém queria participar nesse teatrinho de Sócrates. O governo, claro, desmentiu. Agora, é publicado o despacho que confirma este facto. O governo mentiu (não é novidade). O governo mexeu de forma irresponsável nas nossas reformas (a novidade). Sócrates e Teixeira dos Santos sabiam que comprar dívida portuguesa (ou grega, ou irlandesa) é um acto de altíssimo risco, mas, mesmo assim, não hesitaram em colocar em risco as reformas futuras. Se a dívida portuguesa entrar em reestruturação, nós, portugueses, vamos perder muito dinheiro. Reestruturar a dívida significa não pagar parte da dívida aos credores (20%? 50%?). Ou seja, os credores ficam a arder. Ora, neste cenário, quem fica a arder olimpicamente são os portugueses, são as pensões de reformas dos portugueses. Se isto não é trair o povo, então o que é trair o povo? Para manter o seu teatrinho suicida (“ai, ai, Portugal não precisa de ajuda, eu não coloquei Portugal na bancarrota”), Sócrates arrombou as nossas futuras reformas. Numa irresponsável fuga para a frente, o primeiro-ministro usou o dinheiro da nossa segurança social para financiar uma estratégia sem sentido, que visava apenas salvar a sua face. Isto é a destruição objectiva do tal Estado Social».
Vamos vê-lo agora denunciar, com o mesmo vocabulário, Passos Coelho e Gaspar nas páginas do «Expresso» com base na notícia que eu referi no ponto 5.1.3 desta carta ? Pago para ver.