Carta aberta de ALMEIDA MOURA ao Tribunal Constitucional

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Apesar da carta que a seguir se transcreve ter já mais de um mês, a sua actualidade permanece, razão pela qual merece ser publicada.


Exmo. Senhor
Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Presidente do Tribunal Constitucional

Escrevo a V. Ex.ª na minha tripla qualidade de cidadão, de reformado e de militar.

Deste modo, peço a V. Ex.ª que considere que nada do que a seguir exponho deverá conduzir a extrapolações para o âmbito pessoal, por serem, de todo, inadequadas e sem fundamento.

Escrevo também na sequência dos dois últimos acórdãos do Tribunal Constitucional, a que V. Ex.ª superiormente preside.

Assumo, por outro lado, que o Estado, e as Instituições que compõem a sua estrutura funcional, é um instrumento que a Comunidade cria, definindo os seus limites de acção, para a construção de um Futuro que os seus membros – os cidadãos – desejam comum, se processe de forma segura, exequível, viável. Nesta perspectiva, cada cidadão abdica de uma parte da sua autonomia e da sua liberdade, em nome desse Futuro comum. Este facto não obsta, pelo contrário, reforça o inalienável direito, melhor, dever de cada cidadão de questionar, de criticar, a acção dos diversos órgãos e instituições do Estado, exercício imprescindível de participação individual naquela construção, um exercício efectivo de cidadania e de expressão da soberania da Comunidade.

1. Assim, e como Cidadão, começo por relevar os aspectos determinantes da avaliação política que faço da acção desenvolvida pelo actual governo, e não só, tendo presente que, em Democracia, a legitimidade de um governo comporta duas condições obrigatórias, inseparáveis e complementares: resultar de eleições livres e democráticas; prática governativa conduzida sob, e dentro, da Constituição da República, no respeito pelos Valores e Princípios nela consagrados, definindo objectivos e concretizando acções que permitam à Comunidade, à Nação, alcançar superiores níveis de bem-estar e de realização humana, individual e colectivamente. 

Ora, se a primeira condição foi cumprida, já a prática governativa contrariou manifestamente a segunda:
  • Após a tomada de posse do governo, os partidos que formam a coligação governamental rejeitaram, de facto, os programas políticos com que se tinham apresentado às eleições;
  • Recusam a Constituição da República como Lei subordinante de todas as outras, embora aqueles partidos tenham concorrido a eleições cujas regras a ela se submetem e, mais do que isso, perante a qual juraram cumprir as suas funções;
  • Todas as situações, na sua definição, circunstâncias e consequências, têm sido usadas para dividir os portugueses, pondo intencionalmente uns contra os outros;
  • Tem sido sistematicamente defendido o cumprimento de compromissos assumidos com algumas entidades internacionais (Fundo Monetário Internacional, Banco Central Europeu e Comissão Europeia), pondo em causa compromissos assumidos com outras entidades internacionais (Organização das Nações Unidas, p. ex.), que devem ser considerados de valor superior àqueles e rejeitando o cumprimento de compromissos assumidos com todos nós, como Comunidade;
  • Tem sido constante a chantagem exercida sobre outros órgãos da estrutura funcional do Estado, em particular o Tribunal Constitucional. Chantagem transformada em ameaça aos cidadãos, com afirmações governamentais claras quanto à forma, e conteúdo, da sua prática governativa: se uma determinada norma, ou diploma, não merecer a concordância do Tribunal Constitucional, então surgirá outra norma, ou lei, mais pesada, mais austera, mais gravosa para os cidadãos.
Para tentar justificar todos estes factos, o governo alega estarmos sujeitos a uma “situação de emergência económica e financeira”. Isso mesmo foi exposto, de forma dramática, pelo chefe do governo, no início das suas funções, e na Assembleia da República, ao afirmar, com veemência, ter o governo constatado haver “um colossal desvio nas contas públicas”.

No entanto, e perante a gravidade da situação descrita, o governo:
  • Não apresentou a sua demissão por não ter condições para governar no cumprimento dos programas que os partidos da coligação tinham defendido na campanha eleitoral, e com os quais tinham obtido os votos que os conduziram ao Poder;
  • Não requereu, com carácter de urgência, uma auditoria independente às contas públicas, por forma a informar os cidadãos, com verdade e com transparência, da real situação que todos tínhamos que enfrentar, suas causas, consequências e responsáveis;
  • Não assumiu como sua a responsabilidade de ultrapassar, e vencer, esse “colossal desvio”. Pelo contrário, todas as ocasiões têm sido usadas para atribuir a governos anteriores, e a todos nós, a responsabilidade pelo “estado a que chegámos”.
A estes factos deverá acrescentar-se um outro, de idêntica relevância: a Assembleia da República, através da sua maioria, dando “corpo” ao auto-designado “arco da governabilidade” (que triste e pequenina forma de dizer “Somos todos democratas desde que sejamos nós a mandar”!), também se escusou a tomar a iniciativa de exigir a necessária, e urgente, auditoria independente às contas públicas. A Assembleia da República tinha esse dever, quer porque o governo fugiu a fazê-lo, quer porque é à Assembleia da República que cabe a responsabilidade de aprovar os orçamentos de Estado. Isto é, também ela, através da maioria, denegou as suas responsabilidades.

Estamos, pois, perante um governo ilegítimo pelo exercício que efectivamente faz do Poder que os Portugueses, enquanto cidadãos, lhe concederam naquelas eleições livres e democráticas.

Importa ainda referir um acto de enorme significado, e consequências, praticado pela pessoa que desempenha o cargo de Presidente da República. Ao optar por ser remunerado pelas suas pensões de reforma (legalmente) em detrimento do vencimento atribuído ao Presidente da República, esta pessoa afirmou, claramente, que os seus interesses pessoais se sobrepõem ao cargo para que foi eleito: o de máximo representante de uma Comunidade, de um Povo inteiro, e, por inerência, de Comandante Supremo das Forças Armadas.

À ilegitimidade do governo soma-se, deste modo, a prevalência de interesses pessoais sobre os Valores e Princípios que são imprescindíveis para sustentar a coesão de uma Comunidade, a Nação Portuguesa; a afirmação inquestionável da sua Dignidade colectiva, isto é, da sua Soberania perante todas as outras Comunidades; a defesa da sua inalienável Independência na escolha do Futuro comum ansiado pelos seus membros, os Portugueses, cidadãos Inteiros e Livres.

Substituiu-se, de facto, o primado da Ética e da Moral, pelo primado dos Interesses, individuais (sobretudo) ou de grupo, numa integração plena nos “Mercados”, sendo estes amorais e apátridas por auto-definição, por imperiosa necessidade e por prática real.

(Permita-me, Excelência, um pequeno parêntesis. Sendo “Os Mercados” a estrutura de topo da complexa globalização em que vivemos, e sendo “Os Mercados” amorais e apátridas por auto-definição, caberá perguntar: Nós, cidadãos comuns, fazemos parte d’”Os Mercados”? Se sim, deveremos “seguir o exemplo dos nossos superiores”, ou seja, deveremos ser igualmente amorais e apátridas? Consequência: se cada um de nós proceder como procedem “Os Mercados”, isto é, sem “estados da alma” perante os efeitos que as nossas acções possam provocar nos outros, por exemplo, n´”Os Mercados”, estará tudo “certo”. Se não, então nada, rigorosamente nada, temos a ver com os problemas que “Os Mercados” tenham, ou possam vir a ter. Claro que isto é uma simplificação “ingenuamente” enorme e superficial do “contexto” – interno e externo – em que vivemos. Mas é suficiente para “colocar em cima da mesa” o único factor que, efectivamente, conta neste “contexto”: a Força!)

Excelência, este é, a meu ver, o contexto interno que os acórdãos do Tribunal Constitucional não traduzem. Bem pelo contrário:
  • É expressa e reiteradamente relevado o “contexto de emergência económica e financeira”, cuja definição e identificação de causas, efeitos e responsáveis, o governo (e a maioria na Assembleia da República) se recusou a fazer, refugiando-se num intelectual e politicamente débil argumento próprio do movimento NHA (Não Há Alternativa) para impor, “custe o que custar” uma única solução, a austeridade, como o caso da Contribuição Extraordinária de Solidariedade é exemplo. Obviamente que a alegação de que se trata de uma situação NHA não ilude o facto de se tratar, muito simplesmente, de uma opção política e ideológica inteiramente assumida;
  • A solução é aceite, assumindo-se como preponderantes desígnios nacionais “o cumprimento das metas orçamentais”, “o cumprimento dos objectivos e compromissos acordados com instâncias internacionais, “a expectativa de recuperar e manter o acesso pleno ao financiamento de mercado”;
  • Ao mesmo tempo transforma efeitos da “situação de emergência económica e financeira” – “diminuição das receitas do sistema de segurança social”, “aumento do desemprego”, “redução dos salários”, “novas tendências migratórias”, “aumento das despesas com o apoio ao desemprego”, “situação de pobreza” – em causas dessa mesma “emergência económica e financeira”;
  • Por outro lado, se recusa a solução (CES) como definitiva, pois que é apresentada como transitória, não deixa de a manter refém do “cumprimento das metas orçamentais: a sua continuidade não será definitiva, mas poderá ser…permanente;
  • Este “sequestro” impede que os pensionistas e reformados depositem confiança na inalterabilidade da sua situação, porquanto “é um facto que indicia reduzida previsibilidade e estabilidade” da sua relação para com o Estado.
Aliar a transitoriedade permanente à imprevisibilidade da relação com o Estado a que ficam sujeitos os pensionistas e reformados, deixa-os totalmente desamparados, sem expectativas de vida para além das impostas anualmente pelos sucessivos orçamentos do Estado. A esperança de vida de cada pensionista e reformado passa a depender, acima de tudo, do OE (Orçamento do Estado)!
Mas serão só os pensionistas que ficam, deste modo, privados de qualquer futuro que não esteja devidamente contemplado num orçamento do Estado e que não ultrapasse a vigência desse orçamento? Não seremos todos nós – individual, familiar e colectivamente – que estamos perante a colonização do nosso futuro feita por uma “emergência económica e financeira” que não sabemos o que seja, como surgiu, quais os responsáveis?

Que valor têm, hoje, os compromissos assumidos por quem quer que seja, se um dos factores considerados nesses compromissos estiver relacionado, de algum modo, com verbas inscritas (ou não…) no orçamento do Estado?

Que valor têm as decisões dos Tribunais se um dos factores em que se basearem for, p. ex., rendimentos dependentes do Estado?

Uma análise rigorosa dos contextos em que vivemos condicionam as escolhas que devemos fazer para a defesa e o desenvolvimento do bem-estar e da construção do Futuro que, como Comunidade, desejamos comum, estabelecendo prioridades na sua concretização, sob a imprescindível determinação dos Valores e Princípios em que acreditamos, nos reconhecemos e revemos. Mas quando esses contextos assumem um carácter determinante, passam a ser os Interesses que prevalecem e que, mesmo quando se apresentam como de toda a Comunidade, isto é, Nacionais, rapidamente nos confrontamos com um eufemismo, vago e debilmente definido, o “Interesse Nacional”, para constatarmos que o que surge como efectivamente relevante são os interesses privados, alguns privadíssimos, muitos obscuros (os casos BPP, BPN, BCP, BANIF, PPP’s, SWAP’s, poderão ter outra leitura?).

Excelência, quando a vida de uma Comunidade perde o primado dos Valores e dos Princípios, e aceita, ou lhe vê ser imposta a prevalência dos Interesses; quando a Ética e a Moral são subjugadas pela Lei; e quando esta se vê determinada pela constante evolução de “contextos” mal definidos e pior justificados; perde-se por completo o respeito e a confiança nas instituições, sobretudo no Estado, e mesmo entre os membros da Comunidade, entre si.

Ficam escancaradas as portas para que a única determinante seja a Força!

2. Como Reformado, e após 47 anos a colocar à guarda do Estado, todos os meses, os montantes que o Estado me impôs para ter uma pensão de reforma dentro das leis que igualmente me impôs, condições para que me garantisse aquela pensão, constato que afinal o Estado trata esse valor como se fosse dele e não meu!

Excelência, sabemos ambos que, se porventura eu (ou qualquer outro reformado) tivesse colocado este montante numa entidade privada para, no final da vida profissionalmente activa, pudesse ter um rendimento expectável e estável, que me permitisse gerir a minha velhice, e se essa entidade privada fizesse o que o Estado me está a fazer, tal acto configuraria um caso de polícia, por roubo e abuso de poder.

Por isso, Excelência, não posso calar a minha indignação perante um acto de violência criminosa praticada por este governo, tanto mais que todas as pretendidas justificações mais não são que mistificações de uma concreta realidade: a “emergência económica e financeira” não está definida, nem nos seus contornos, nem na sua extensão; das causas, como já salientei, quer o governo quer a maioria na Assembleia da República fugiram da sua identificação, e da consequente identificação de responsáveis; e os efeitos das medidas que, supostamente, a resolveriam (e que têm atingido, sempre e apenas, a maioria da população que tem no seu salário ou na sua pensão a única forma de sustentar a sua vida), foram transformados em causas desta situação, como também já referi.

Permita-me, Excelência, que abra um parêntesis para uma pergunta que me angustia: como é possível que alguém considere que os milhares de crianças que chegam às Escolas com fome (mais de 10.000, segundo números do Ministério da Educação) sejam uma causa e não um criminoso efeito da austeridade que nos está a ser imposta?

Ainda como reformado, acompanho a “dor e o desprezo” que juízes e diplomatas sentem por terem sido “proibidos” de participar na “solidariedade” que a CES impõe!

Ironia? Apenas como último instrumento do exercício, de que não abdico, do meu Direito à Indignação. E praticado quando se apresentam outros Direitos igualmente inalienáveis – e igualmente inscritos na Constituição da República -, exigindo serem, também, exercidos.

3. Como Militar, começo por situar o âmbito de actuação em que se inscreve a Condição Militar: no limite dessa actuação, o militar morre e mata. Daí que a Condição Militar tenha, como sua matriz fundacional, três exigentíssimas opções políticas e humanas. Tão exigentes são essas opções que determinam como sua primeira, inultrapassável e definitiva expressão, o juramento que, solenemente, publicamente, e individualmente, cada militar faz perante a Comunidade a que pertence, perante o Povo de que faz parte sem margem para quaisquer dúvidas, e com cuja defesa se compromete totalmente. Importa realçar que este juramento não é feito perante o governo (qualquer que ele seja), ou uma instituição qualquer.

Este juramento, que inclui, explicitamente, o “cumprir e fazer cumprir a Constituição da República”, termina por afirmar a sua (individual, realço) disponibilidade para o “sacrifício da própria vida, se necessário for”. Tenha a certeza, Excelência, que me acompanhará quando rejeito liminarmente quaisquer interpretações que possam sequer sugerir que, ao assim jurarem, os militares estão a denunciar uma qualquer patologia suicida.

Mas esta morte acontece, e é consequência, de um conflito armado: o militar também mata. E mata outros seres humanos. Renovo a certeza de que V. Ex.ª me acompanha: não é por serem psicopatas assassinos que os militares matam.

Não sendo nem suicidas nem psicopatas, a Morte, para os militares – insisto, individualmente – só tem sentido se irrecusavelmente, incontornavelmente, imprescindivelmente, definitivamente, estiver sustentada, e sustentar, Valores e Princípios que cada militar sinta, reconheça e reveja como indiscutível e inalienavelmente seus.

A estas duas opções políticas e humanas, exigentíssimas como disse, junta-se uma outra. Num regime democrático um militar é apartidário. Mas ser apartidário é, também, uma exigentíssima opção política e humana: significa que todos os membros da Comunidade que jurou defender são inquestionavelmente detentores do Direito de serem defendidos, quaisquer que sejam as suas escolhas políticas, religiosas, profissionais, ou a côr da pele, o sexo, o nível de riqueza, a idade, enquanto, como cidadãos, reconheçam, partilhem e pratiquem os Valores e Princípios sob os quais se organiza a Comunidade, e que estão inscritos na Constituição da República.

Num regime democrático, as armas que os militares têm nas mãos não podem ser, nunca, a primeira opção para dirimir conflitos, sejam estes internos ou externos. Como primeira consequência inexorável, o Poder Militar subordina-se ao Poder Político. Uma segunda consequência tem que ser respeitada e assumida, face às três opções políticas e humanas referidas: subordinação não é sinónimo de submissão.

Mas para além deste relacionamento directo entre Poder Militar (como politicamente subordinado) e Poder Político (como politicamente subordinante), ambos se submetem à Constituição da República, enquanto Lei Fundamental onde se inscrevem os Valores e os Princípios reconhecidos pelos cidadãos como seus, quer para o seu activo comprometimento colectivo na vivência do Presente, quer para a sua participação, individual e colectiva, na construção de um Futuro desejado comum. Ao jurarem “cumprir e fazer cumprir a Constituição”, os militares – o Poder Militar – submetem-se perante o Povo, não perante este ou aquele governo. Ao constituir-se como Poder Político, um governo democrático submete-se ao Povo que o elegeu, para governar pelo Povo e para o Povo.

Por outro lado, a submissão de um a outro entre dois poderes (ou instituições, ou pessoas) traduz-se, inevitavelmente, por parte de quem se submete, na interiorização da irresponsabilidade por quaisquer actos praticados, qualquer que seja a natureza destes, e na correspondente responsabilização total pelos mesmos actos por parte de quem submete. Pelo contrário, a subordinação impõe a definição de uma hierarquia de responsabilidades, reconhecida, aceite e praticada pelos diversos actores intervenientes.

Creio, Excelência, que pude expressar acima a minha profunda convicção de que este governo tem dado provas sobejas de que assumir responsabilidades é algo que não está nos seus propósitos: são inúmeras as vezes que os seus actos, e suas consequências, são da “responsabilidade” de alguma instituição estrangeira (a “troika”, p. ex.), ou interna (o Tribunal Constitucional tem sido o “preferido”); de algo tão vago e tão omnipotente como “Os Mercados”; ou, mais comummente, de todos os cidadãos, pelos quais e para os quais era suposto exercerem a governação. E, quando qualquer destes “responsáveis” não é “convincente”, tem encontrado sempre aberto o “refúgio” do movimento NHA.

Mas mesmo a subordinação está posta em causa. O Poder Militar jura “cumprir e fazer cumprir a Constituição da República”, enquanto o Poder Político, este governo, de facto a desrespeita. E tanto assim procede que não se coíbe de afirmar, e praticar, o seu oposto: se uma lei não serve os desígnios do governo, muda-se a lei. E se a lei pretendida for declarada contrária à Constituição, apresenta outra “ainda mais gravosa”.

Mesmo “esquecendo por momentos” (como se tal fosse possível!), os Valores, os Princípios, a Ética, a Moral, detenhamo-nos na Lei. O Estatuto de Roma impõe, sem margem para dúvidas, a responsabilidade individual de quem (militar ou civil) tenha cometido um Crime de Guerra ou um Crime Contra a Humanidade. Isto é, a ninguém (por maioria de razão, a um militar) é permitido invocar o ” cumprimento de ordens” quando delas resulte a prática de um daqueles Crimes. Impõe, também, a responsabilidade acrescida dos superiores hierárquicos, até ao nível mais elevado, ou seja, o Poder Político.

Fica claro, desta forma, o presente antagonismo entre estes dois Poderes de Estado: por um lado, o Poder Militar mantendo o seu apartidarismo, mas, simultaneamente, consciente de que os Valores e Princípios consagrados na Constituição são para serem defendidos “mesmo com sacrifício da própria vida”; por outro, o Poder Político, o governo, assumindo o primado dos Interesses em desfavor dos Valores e Princípios sob os quais se apresentou a eleições, e aos quais jurou Lealdade, a Lealdade que deveria pautar a sua acção governativa.

Desta deslealdade, e para além das várias consequências já apontadas, resulta também o anular de um dos Princípios básicos de um Estado que se afirme Democrático: a separação efectiva dos Poderes de Estado.

Na verdade, o Poder Executivo, o governo, exerce um controlo efectivo sobre o Poder Legislativo (a maioria na Assembleia da República tem consentido, senão apoiado, o contínuo desrespeito pela Constituição, e a menorização, senão anulação, da acção realmente fiscalizadora, que lhe cabe, da prática governativa), e sobre o Poder Judicial (a diferença de tratamento entre o comum dos cidadãos e os “representantes dos Interesses instalados” é por demais evidente).

E não é verdade, Excelência, que até o Tribunal Constitucional, sujeito a mesquinha chantagem (inclusive estrangeira, pasme-se!), acaba por se vergar a esta concentração de poderes no governo: a transitoriedade permanente de algumas leis (a CES, p. ex.), e as expectativas dos cidadãos (não apenas os funcionários públicos, não apenas os pensionistas e reformados, a própria actividade económica) reduzidas à vigência do orçamento anual (exponenciada por sucessivos “orçamentos rectificativos”) não são uma porta aberta para que os Interesses se sobreponham às leis, para que a única lei com valor efectivo e reconhecido seja a Força, a lei do mais forte?

Não creio, Excelência, que a enorme falta de confiança que se instalou no País, sobretudo (ainda…) em relação aos Poderes de Estado, tenha outras razões que não as que acima exponho.
Por último, faço um pedido a V. Ex.ª. Um pedido que se baseia na consciência de que a guerra é um assunto demasiado sério para ser deixado apenas nas mãos dos generais, ou apenas nas mãos dos políticos; a consciência de que a guerra é uma questão muito séria e diz-nos respeito a todos. O que obriga cada um de nós a procurar dentro de si as Razões, Valores e Princípios Humanos pelos quais deve lutar, não apenas por si e pelos seus interesses pessoais, por mais legítimos que sejam, mas numa partilha responsável, solidária, cidadã, na construção de um destino comum, partilha que começa por exigir, com carácter urgente e efectivo, responsabilidades a quem exerce os Poderes de Estado, pois que, por eleitos que tenham sido, não lhes foi concedida impunidade, nem “passado um cheque em branco”.

Vossa Excelência sabe, convictamente, onde podemos encontrar, na acção deste governo, actos que permitam a cada um de nós ir até ao sacrifício da própria vida, com plena confiança e sem nos sentirmos a defender meros interesses privados, privadíssimos, obscuros, escondidos atrás de semânticas “douradas”, sem nenhuma relação com Valores e Princípios Humanos?

Com os meus cumprimentos

António Joaquim Almeida de Moura
Capitão-de-Mar-e-Guerra, Reformado
P.S.: Esta carta pretendo-a Aberta, pelo que a enviarei a outros membros do Tribunal Constitucional, bem como a outras instituições e pessoas a quem considero ser meu dever comunicar esta minha posição, pelo muito respeito que me merecem.