Amanhã, há um de entre nós que vai falar para o Mundo, a toda a largura dos seus dramas e dos seus sonhos. É em Nova Iorque, e o presidente Marcelo e o primeiro-ministro Costa estarão lá a representar-nos, como orgulhosas testemunhas. Eleito e aclamado secretário-geral da ONU, António Guterres jura perante representantes de 193 países que cumprirá com lealdade as obrigações da Carta das Nações Unidas que a todos compromete.
Guterres, que sucede ao sul-coreano Ban Ki-moon, será o nono secretário-geral desde a fundação da ONU, e o quarto europeu (o último foi o austríaco Kurt Waldheim, de 1971 a 1982) a desempenhar as funções de “principal funcionário” da organização criada em 1945 para “prevenir as gerações vindoiras dos flagelos da guerra” e “reafirmar a fé das nações nos direitos, na dignidade e no valor da pessoa humana, e na igualdade de direitos das mulheres e dos homens”.
Guterres inicia funções em 1 de janeiro, numa conjuntura de alta tensão internacional que o obrigará a lidar com a mais grave crise de refugiados desde a II Guerra Mundial: o agudizar de conflitos como os da Síria e do Iraque, a pressão dos fluxos migratórios sobre a Europa, os estilhaços de horror gerados pelo terrorismo jiadista, e a perigosa vaga de populismo e xenofobia em várias geografias.
A empreitada é grande, mas o empreiteiro não desmerece. A esperança é que ele resgate o poder e a autoridade moral necessários a uma organização sempre tentada pelos mais nefastos demónios que guiam os negócios mundiais que, por várias vezes, têm conduzido a ONU para a negação da sua própria Carta, tornando-se parceira de guerra em vez de intermediária da paz.
O Mundo está mais incerto e perigoso que nos anos da Guerra Fria. E, num tempo em que à nossa volta se reerguem muros e se cavam desigualdades, a esperança é de que possamos dormir mais tranquilos sabendo que na sentinela estará um construtor de pontes.
A expectativa é de que António Guterres seja capaz de facilitar o diálogo e gerar os consensos necessários para que a ONU se transforme a si própria, por dentro. A começar na composição do Conselho de Segurança, onde ainda impera o voto dos cinco magníficos (Estados Unidos, França, Reino Unido, Rússia e República Popular da China) que têm poder mandatário e de veto entre os 193 países membros. O que se espera do português eleito para o mais alto lugar de serviço poderá ser quixotesco. Mas, tal como Cervantes, autor do “engenhoso fidalgo D. Quixote”, também Guterres sabe que o cavaleiro não pode andar mais depressa do que a cavalgadura.
Afonso Camões
Opinião JN 11.12.2016
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