É uma desilusão – e, francamente, parece-me mal ou perigosamente fundamentado em alguns pontos.
1 – Em primeiro lugar, ao contrário do que eu supunha, a pronúncia do Tribunal não se limitou à questão do escalão entre os 1000 e os 1350 euros, mas a todos os campos de aplicação da CES.
2 – Em segundo lugar, o tratamento pelo Tribunal da argumentação dos deputados relativamente à violação ao princípio da confiança não é aceitável, afastando-se do que parecia o entendimento anterior do TC sobre esta matéria, por um lado; e, por outro lado, constitui um claro benefício do infractor, incitando o Governo a aumentar as agressões contributivas ou fiscais aos reformados.
O que diz o acórdão, sobre isso, em suma, é o seguinte: os reformados que têm visto as suas reformas cortadas pela CES desde 2011 já estão habituados aos cortes, já estão à espera de que eles possam ocorrer – pelo que a confiança na manutenção das pensões já se encontra enfraquecida.
Para o Tribunal, quem nunca viu a pensão cortada tem uma protecção da confiança mais forte do que quem já a viu cortada em outros momentos: estes já estão acostumados.
Embora, para o ano, aqueles que foram cortados pela primeira vez este ano também já comecem a ficar habituados – e lá se foi a protecção da confiança também para esses!
Segundo este entendimento do Tribunal, quanto mais cortes, mais habituação, menos violação da confiança.
Em boa lógica, quando as pensões forem integralmente cortadas, ao fim de vários anos de habituação gradual, atinge-se a situação bizarra de eliminação definitiva da confiança.
Trata-se de um raciocínio distorcido, que, como disse, beneficia o infractor: quanto mais tempo durarem e mais fundos forem os cortes efectuados pelo Governo, mais este estará a salvo de declarações de inconstitucionalidade.
3 – Outro ponto controverso consiste no facto de o Tribunal praticamente não se ter detido no exame da questão, apresentada pelos deputados do PS, de o próprio Governo, aquando da CES de 2013, ter apresentado o valor mínimo de 1350 euros como correspondente nas pensões, em termos práticos, aos 1500 euros a partir dos quais se iniciavam os cortes nos salários dos funcionários públicos – assim cumprindo o princípio da igualdade proporcional, na modalidade da proibição do excesso.
O mesmo é dizer que a diminuição desse patamar mínimo para 1000 euros configura uma violação desse princípio.
O Tribunal não trata senão com grande displicência o assunto, limitando-se a enunciar um vago indicador recolhido na PORDATA – entidade que, como sabemos, integrada na Fundação Francisco Manuel dos Santos, da Jerónimo Martins, tem constituído, com pretensa caução científica, a mais insistente agência de influência das posições do Governo quanto à alegada insustentabilidade dos sistemas públicos de protecção social.
4 – Vejo com grande preocupação uma referência aparentemente marginal do acórdão, que parece remeter para todo o período de vigência do Tratado Orçamental, e já não para apenas o período, já findo, do PAEF, o argumento de excepcionalidade que tem servido de cobertura constitucional para as diversas medidas que o TC tem deixado passar.
Com efeito, no nº 14 do acórdão, o TC diz o seguinte: “Ora, para os pensionistas incluídos na base de incidência subjetiva da CES desde 2013 – aqueles que agora vêem agravada a taxa efetiva, por serem titulares de pensões de valor superiores a €3750 – pode defender-se que não existem verdadeiras expectativas de não reposição da CES para o ano em curso, nem que se tenha gerado uma situação de confiança tutelável de que tal regime não seria alterado, in pejus, quanto às taxas aplicáveis.
Na verdade, situando-se ainda, pelo menos parcialmente, dentro do período de vigência do PAEF e integralmente dentro do período de observância de metas de redução do défice orçamental por este programa fixadas, é lícito sustentar que a decisão de renovar ou alterar a CES, não constitui um facto imprevisível ou, pelo menos, contrário às expectativas legítimas e razoáveis que o Estado tenha criado nos cidadãos.”
5 – Finalmente, o Tribunal, em vários passos, toma acriticamente por boa a argumentação do Governo quanto à pretensa indispensabilidade da medida para diminuir a despesa pública, traduzida em transferências do Orçamento de Estado para a Segurança Social ou para a CGA, IP.
Esta argumentação, no entanto, é insubsistente: por um lado, porque, como o próprio TC tem afirmado, a questão da (in)sustentabilidade do sub-sistema da CGA não é invocável, dado ter sido o Governo que, ao tomar a decisão política de fazer cessar o ingresso de beneficiários na CGA e ao não cumprir a sua obrigação contributiva como empregador, a condenou à inevitabilidade das transferências do Orçamento de Estado: não é uma transferência conjuntural, mas estrutural do sistema; por outro lado, porque o Orçamento do sub-sistema previdencial do Regime Geral da Segurança Social é superavitário, sendo ele que, embora ilegalmente, financia o défice do Orçamento de Estado – e não o contrário.
Espanta que, sendo este um facto que hoje ninguém ignora, tenha passado ao lado da ciência do Tribunal Constitucional.
Henrique Rodrigues
Presidente recém-eleito da Mesa da AG da APRe!
(Porto, 30 de Julho de 2014)