Comer gelados com a testa

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Os célebres 10 mil milhões de euros que saíram de Portugal para paraísos fiscais não eram do Estado, logo não poderiam servir para pagar o Serviço Nacional de Saúde ou abater ao nosso endividamento.

Tendo eu ouvido gente com responsabilidades dizer que com este dinheiro se pagava o Serviço Nacional de Saúde ou se podia fazer um abatimento à divida pública, achei por bem lembrar que aquele dinheiro será de alguém mas não do Estado. É que não se pode discutir o que quer que seja de forma séria quando os assuntos ficam cobertos da poeira radioativa chamada demagogia.

Um par de factos para começar.

Facto: 10 mil milhões de euros saíram do nosso sistema financeiro para paraísos fiscais sem que as autoridades tributárias tivessem averiguado se tudo estava conforme a legalidade. Importa referir que saiu muito mais dinheiro (cerca de 30 mil milhões de euros) para esses centros de lavagem de dinheiro – que ainda ninguém conseguiu justificar a existência e que, até prova em contrário, servem para que os que menos podem pagar impostos paguem cada vez mais e os que mais deviam pagar continuem a não pagar. Seja como for, é perfeitamente legal mandar dinheiro para esses locais. Mais, ninguém, neste momento, é capaz de dizer se houve ou não fuga aos impostos.

Facto: durante o tempo em que o anterior secretário de Estado dos Assuntos Fiscais esteve em funções não foi publicada a lista da estatística das transferências para contas offshore.

Agora, as considerações.

Numa época em que o país passava por um enorme aperto, em que a carga fiscal nos esmagava – principalmente, claro está, os mais fracos da comunidade -, umas transferenciazitas, plasmadas em 20 documentos, no valor de 10 mil milhões de euros foram feitas sem que ninguém se incomodasse a olhar para elas.

Erro informático, alega o ex-secretário de Estado. O mesmo secretário de Estado que também não sabia que havia uma lista VIP e que, como parece ser seu costume, acusou os serviços de atuar nas suas costas. Os serviços que ele geria. Os serviços que se comprometeu, perante o seu ministro e primeiro-ministro, a supervisionar. Exatamente o mesmo secretário de Estado que se fartou de contratar gente para a administração fiscal e se gabava da excelência dos seus serviços. Quando atuavam bem, era a sua genial capacidade, quando algo falhava ou era incompetência dos homens dos Impostos ou erro informático.

Algo parece claro, eu e muitos portugueses temos um azar dos diabos. Falo por mim. Uma pena estes erros informáticos não terem acontecido com o meu IRS ou com o meu IVA ou com as dezenas de taxas e taxinhas que pago. Quando há erros são sempre contra mim e primeiro pago e depois queixo-me.

Pronto, admitamos que o bom do Paulo Núncio tem muito jeito para fazer simuladores que anunciam devoluções de sobretaxas que nunca chegam a acontecer, para sorteios de carros, mas que não tem muito jeito para gerir equipas e é esquecido. Temos de acrescentar, claro está, pouca sensibilidade para avaliar o momento económico e político. É estranho que não lhe ocorresse que, à época, as transferências para fora do país, sobretudo para paraísos fiscais, deviam ser especialmente observadas. Um pequeno desenho: dificuldades das pessoas, falta de dinheiro no sistema, muita vontade de fugir aos impostos – sobretudo de quem tem meios para tentar fugir.

Há outro problema nesta história. Por que diabo não foi publicada a lista da estatística das transferências para contas offshore? Paulo Núncio, para não variar, diz que não foi culpa sua. O ex-diretor dos serviços dos Impostos afirma que solicitou não uma mas três vezes que essa lista fosse divulgada. Alguém está a faltar à verdade ou, em português corrente, há aqui um “erro de perceção mútuo”. O que me foge à compreensão é como é que um especialista em fiscalidade, alguém que percebe muito de offshores (parte importante da sua atividade nos escritórios de advogados por onde passou), como o ex-secretário de Estado, não se lembrou de que essa lista era habitualmente publicada. É muito difícil conceber que um homem com experiência nestas matérias ignorasse a existência de tal lista. Sabia tudo de offshores e desconhecia que essa lista era publicada? Só faltava que o Paulo Núncio não soubesse que havia esquemas para fugir aos impostos através de offshores. Pois, e nós andamos todos a comer gelados com a testa.

Claro que a possível distração, negligência ou outra coisa qualquer não terá sido só dele, está Núncio bem acompanhado pelas pessoas a quem respondia: os ministros das Finanças e o primeiro-ministro. Do que não há dúvidas é que, por muito nervoso que este assunto deixe Passos Coelho, nem ele nem Maria Luís acharam minimamente importante saber o que se passava com a circulação de dinheiro para as offshores num momento tão sensível. A luva da falta de vontade em saber ou da negligência assenta-lhes de forma idêntica à de Paulo Núncio.

A verdade é que há demasiadas coisas nesta história que tresandam. Talvez quando soubermos mais sobre quem transferiu o dinheiro, que empresas, que interesses estão em causa alguma luz se faça.

Tudo isto parece demasiado descaramento para vigarice ou demasiada negligência para distração.

Pedro Marques Lopes
Opinião DN 26.02.2017