De que serve um epitáfio?

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Os velhos são chatos, os velhos dão trabalho, os velhos cansam. Mas foram eles os nossos pais ou as nossas mães. Enxugaram-nos as lágrimas, estiveram ao nosso lado quando tínhamos febre, sofreram as nossas dores, fizeram a nossa comida preferida quando estávamos tristes. Só isso se guarda: o amor.

Vi na serenidade de paredes grossas das noites de domingo, “Heimkommen” (Voltar a casa), reduzido ao pequeno écrã do iPhone. São 1 minutos e 47 segundos de vídeo. Cabe lá a vida. Conseguimos ouvir o som e o silêncio dentro de nós. Em apenas dois dias, o filme produzido para cadeia de supermercados alemães Edeka foi visualizado mais de 4 milhões de vezes.

Numa época em que a noção de pessoa se tornou virtual e abstracta esquecemos que o toque, o afecto, o abraço são a essência. Nenhum emoji, nenhuma conversa por Skype, nenhuma mensagem por Whatsapp substitui a presença, substitui a vida, essa coisa chata feita de erros e escolhas, onde se ri e se chora. Que às vezes magoa.

O filme mostra um velho sentado à mesa. Só. No atendedor de chamadas sucedem-se as vozes dos filhos a informar que não lhes é possível passar a consoada em casa. “Desculpa, fica para o ano”. Como se o ano seguinte fosse um consolo para quem tem a eternidade à espera na curva. Prossegue mostrando os dias dos filhos vividos a uma velocidade anestesiante. Até ao momento em que a correria é interrompida por uma notícia. A da morte do pai. De negro profundo, os filhos entram na casa paterna e descobrem que afinal o pai está vivo. “De outra forma não vos conseguiria juntar à ceia de Natal”. “Happy end”? Depois da infância a velhice é uma segunda e mais perigosa inocência. Perdoe-se o ardil.

Sendo uma pessoa atenta aos sentimentos e ficou-me a ecoar na cabeça um verso de Jorge Luís Borges que é uma metáfora terrível do drama interior de muitos velhos: “Por Francis Haslam, que pediu perdão aos seus filhos/ Por morrer tão devagar”. Truman Capote escreve que estamos sempre sós debaixo dos céus com aquilo que amamos. Quando envelhecemos a solidão adensa-se como um nevoeiro pesado que se cola à pele e enche a alma de todo o frio do mundo. Hoje os velhos vivem e mais sós. A morte social chega tantas vezes antes do derradeiro bombear do coração. Os filhos, os amigos, os que amamos acolchoam o estar-se só. Ou não.

Há uma expressão servo-croata – usada em Belgrado, Sarajevo ou Zagreb – que diz “ispravlja krivo Drino”, endireitar Drino (que é um rio sinuoso) – que se usa quando alguém tenta colar porcelana sem deixar marcas, ou salvar o mundo. Não se pode endireitar o Drino, assim como não há famílias perfeitas, nem relações perfeitas, como na publicidade. Há zangas, há maldezinhas, há o tédio. Os velhos são chatos, os velhos dão trabalho, os velhos cansam. Mas foram eles os nossos pais ou as nossas mães. Enxugaram-nos as lágrimas, estiveram ao nosso lado quando tínhamos febre, sofreram as nossas dores, fizeram a nossa comida preferida quando estávamos tristes, escoraram-nos. Só isso se guarda: o amor. É preciso é ter a coragem de ultrapassar o egoísmo e viver por inteiro.

De que serve um epitáfio? Digam-me.

Helena Ferro de Gouveia