“Ouvimos aqueles tipos a falar e parece que vivem noutro mundo. Parece que vivem numa espécie de realidade virtual”, dizia-me o Rui esta semana, sereno mas insatisfeito com a desfaçatez. “Eles” são os políticos. “Realidade virtual” são as estatísticas e os números com que nos asseguram, dia sim, dia sim, que o país está melhor e que a crise se foi com a troika. Para ilustrar o raciocínio, apontou-me o exemplo de um utente que há dias lhe entrou pelo consultório médico. Um homem na casa dos 70 anos que, depois de muitos anos de trabalho, não merecia outra coisa do que um resto de vida tranquilo, mas cujas poupanças e pensão de reforma se transformaram na tábua de salvação de filhos e netos. Um filho mais novo, que já passou os 30 anos, arquiteto, incapaz de arranjar emprego, e que ainda vive com e à custa dos pais. Um filho mais velho, na casa dos 40 anos, engenheiro, desempregado desde que a empresa fechou, com quatro filhos, a quem o pai e avô tem agora de pagar a prestação e outras contas da casa.
Os sociólogos chamam-lhe “solidariedade intergeracional” e dizem que é isto que explica que o impacto da crise tenha sido um pouco atenuado em Portugal (e apesar do corte nas pensões que o Governo impôs com zelo nos últimos anos). Um esforço que assegura a viabilidade de muitas famílias, mas que não é reproduzível, ou seja, sustentável a prazo. Como explica Lina Coelho, subdiretora da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, a propósito de uma investigação sobre finanças conjugais em tempo de crise, “a atual geração de idosos está a sustentar o padrão de vida dos filhos e dos netos, mas estes já não vão conseguir reproduzir o modelo em relação aos seus próprios filhos e netos”, afetados que já estão por “percursos de vida e de carreira muito mais fragmentados e precários”. Quantas pessoas hoje com 40 anos terão, aos 70, possibilidade de apoiar os seus filhos e netos?
Cada vez menos, garantidamente. Como ontem mesmo se explicava no JN, um trabalhador que tenha conseguido reformar–se no ano passado ainda conseguiu, em média, uma pensão equivalente a 63% do seu salário. Segundo as estimativas da Comissão Europeia, dentro de 15 anos, ou seja, aqueles que estão agora na casa dos 50, conseguirão uma pensão equivalente a 43% do salário. Ao défice público e orçamental teremos então de juntar a noção de défice de solidariedade, que ainda não aparece nas estatísticas oficiais, nem nas análises da Unidade Técnica de Apoio Orçamental, mas é ainda mais importante para medir as possibilidades de assegurar dignidade na vida real.
Rafael Barbosa
Opinião JN 03.09.15